Autor da decisão que limita a compra de terras por estrangeiros, Luís Inácio Adams, ex-advogado-geral da União, afirma que a lei que trata do tema está ultrapassada e precisa ser modernizada — o que não significa que ela seja inválida.
“A tensão entre a regra e a realidade é muito grande. E atrapalha muitos negócios, muitas oportunidades de desenvolvimento. Por outro lado, existe a preocupação sempre presente da segurança e soberania brasileira”, disse Adams em entrevista ao The AgriBiz.
O tema voltou a esquentar no último mês com a expectativa de um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). De forma resumida, o STF vai decidir se a Lei 5.709 de 1971, que restringe a compra de terras por estrangeiros, é acolhida pela Constituição Federal de 1988.
O principal ponto nessa discussão é a aplicabilidade das restrições a empresas sediadas no Brasil com capital majoritariamente estrangeiro. A lei específica, de 1971, diz que sim. Mas uma emenda constitucional de 1995 equiparou a empresa brasileira com controle estrangeiro à empresa brasileira de capital nacional.
O parecer da AGU de autoria de Adams, de 2010, decidiu pela recepção (no jargão jurídico) da Lei 5.709 pela nova ordem constitucional. Mas há diversos questionamentos na Justiça a respeito dessa questão, o que aumenta a insegurança jurídica e limita o investimento estrangeiro no agronegócio brasileiro. Com o julgamento no STF sobre o mérito dessa questão, espera-se uma maior clareza a respeito de uma discussão antiga.
Adams, hoje sócio das áreas de contencioso, arbitragem e compliance do escritório Tauil & Chequer, continua defendendo restrições a empresas que tenham maioria de seu capital político estrangeiro. Como um caminho possível, ele sugere que sejam incorporados à legislação específica conceitos que surgiram desde a promulgação da lei em 1971, como os de ações preferenciais e ordinárias.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
The AgriBiz – O parecer do sr. é um tema amplamente discutido no meio jurídico, com opiniões das mais diversas sobre ele. Qual foi a base para o sr. mudar o entendimento que se tinha até então sobre a lei de aquisição de terras por estrangeiros?
Luís Adams – Antes do parecer, o entendimento que predominava era o de que não havia distinção entre empresa nacional e empresa sediada no Brasil. Portanto, a restrição se aplicaria apenas às empresas que fizessem aquisição direta, e não através de companhias criadas e controladas no Brasil.
Com o tempo, as alegações de compra de terras por estrangeiros começaram a crescer. As principais queixas eram de compras por parte dos chineses, na época, mas a verdade é que essa informação não estava disponível. Não existia controle. Mas isso começou a ser analisado pelo então ministro Gilson Dipp, que fixou um parecer apontando que havia distinção entre as empresas brasileiras e companhias sediadas no Brasil. Foi nesse contexto em que cheguei.
Como o sr. vê hoje essa decisão e, num aspecto mais amplo, como vê a própria lei?
A lei foi pensada nos anos 70. De fato, está defasada. O que não quer dizer que ela seja inválida. Pense na Lei das Sociedades Anônimas, por exemplo. É uma lei de 1976, que passou por diversas modificações, com o sistema de ações preferenciais, ações ordinárias, o Novo Mercado, e nada disso hoje está incorporado a essa legislação específica. Então ela tem uma defasagem atemporal clara — o que não significa que ela seja inválida.
Na falta de uma atualização legislativa, do Congresso Nacional, quem deveria fazer essa atualização seria a Advocacia-Geral, junto com o INCRA. Se eles não fizerem, o judiciário vai fazer. De toda forma, há uma diferença de tempo relevante entre os negócios e essas decisões, o que acaba suscitando muita insegurança na tomada de decisão.
E trazer que tipo de atualizações?
Uma interpretação possível, que vejo como razoável, é a restrição à compra de terras quando o controle de uma empresa é estrangeiro. Ou seja, existe o poder político, claro, do estrangeiro, da determinação, da evolução da empresa. Já quando o controle é pulverizado, mesmo que você possa ter eventualmente uma maioria estrangeira, isso fica muito mais disperso. Essa é uma incongruência da lei. Ela não consegue lidar com a realidade de uma empresa de mercado.
Então hoje, no caso de uma empresa com controle disperso, em que teoricamente não há um controle político exercido por um único país, a restrição não teria razão de ser, mas isso não impede questionamentos…
O próprio INCRA não sabe como entrar nessas questões, inclusive porque participações societárias são fluidas. Numa empresa no mercado, estamos falando de milhares e milhares de investidores.
A procuradoria do INCRA, por mais competente que seja, não está acostumada a ver esse tipo de questão. Está acostumada a ver o que? Direito Imobiliário, reforma agrária, terra rural. Mercado de capitais, quem está acostumado a ver é a CVM.
Enquanto essa aproximação não acontece, a discussão do tema pelo STF pode trazer alguma solução paliativa nesse sentido?
Eu pessoalmente acho que o Supremo vai acatar essa recepção. Talvez ele possa modular, ou fazer alguns ajustes interpretativos específicos. Mas, por mérito, acredito que ele deve acatar.
Existem interesses muito fortes, dos dois lados, para disputar o entendimento sobre o assunto. Do lado do Congresso, não exercer a pleno a competência constitucional, no sentido de revisar e atualizar a lei, não dar prioridade para isso, força muito a mão do Supremo Tribunal Federal e de como ele vai responder.
A tensão entre a regra e a realidade é muito grande. E atrapalha muitos negócios, muitas oportunidades de desenvolvimento. Por outro lado, existe a preocupação sempre presente da segurança e da soberania brasileira.
Ou seja, o teor dessa limitação, o mérito, vamos dizer assim, continua sendo correto para preservação da soberania nacional?
Eu acho a restrição correta. Existe um interesse nacional sobre seu território que é muito grande. O que a gente verificou à época (do parecer de 2010), e principalmente hoje, é que a segurança alimentar é um fator de grande demanda mundial. A grande commodity do mundo caminha para ser a segurança alimentar.
Tem havido exemplos, fora do País, a respeito de uma aquisição agressiva em vários países de áreas rurais. Eu me lembro do exemplo que citei, foi o caso de Madagascar, em que países adquiriram quase metade da ilha, com autorização do governo — o que inclusive acabou levando a uma revolução e derrubando o governo. Por isso, acho que o Brasil precisa, evidentemente, combinar o desenvolvimento com o equilíbrio.