Para variar, há um abismo entre o que é prometido no vale-tudo da campanha eleitoral e o que, de fato, se concretiza. A começar pela picanha, poderíamos debater também o quesito “responsabilidade fiscal”. Hoje, me aterei à questão do acesso da população às proteínas animais em geral.
Há alguns dias, Lula defendeu a taxação da carne “chique”, sem definir o que isso seria, ao mesmo tempo em que sugeriu a isenção de impostos sobre as “que o povo consome”, como o frango e ovos.
Em suas próprias palavras, “temos que fazer diferenciação. Temos vários tipos de carne, tem a carne “chique”, quem consome pode pagar um impostozinho. E tem a carne que o povo consome. O frango, por exemplo, não precisa ter imposto, faz parte do dia a dia do brasileiro. O ovo também. Uma carne, um músculo, coxão mole, tudo isso pode ser evitado”, segundo ele.
A impressão que ficou é a de que ele sabia o que seria anunciado e aproveitou a oportunidade para se fazer de rogado.
Digo isso porque, no fim, todas as carnes seriam tributadas com redução de 60%, de acordo com o texto substitutivo ao Projeto de Lei Complementar nº 68/2024, disponibilizado pelo Grupo de Trabalho da Reforma Tributária da Câmara dos Deputados. Hoje, a carne bovina possui isenção total ou redução de ICMS em todos os estados e não é incidida pelo PIS e a Cofins.
Difícil debater efeitos sem definir regras, e é justamente esse o ponto da reforma tributária no que tange as carnes. Como entender o impacto se o texto não traz critérios objetivos sobre os valores das alíquotas de referência do IBS e da CBS? Estamos falando exatamente de qual alíquota de IVA? Os artigos falam que as alíquotas serão calculadas a partir de “estimativas de qual seria a receita de CBS, caso fosse aplicada em um dos anos-base” e “estimativa de qual seria a receita do Imposto Seletivo e IPI, caso fossem aplicados”.
No ano passado, foi aprovada uma PEC que determinou que a alíquota do IVA não poderia ser superior à média dos anos anteriores. Mas, considerando aspectos como inflação e a sanha tributária que temos testemunhado, mesmo esse dispositivo fica bastante incipiente e demonstra alta fragilidade. É o tal negócio, “o que começa mal, termina mal”. Hoje, apostamos na alíquota de 26,5%, que só aparece nos jornais, mas não no texto oficial. Amanhã, teremos uma surpresa.
Outro ponto: não é minha intenção colocar um setor do agro contra o outro, mas cabe questionar o que justificaria o açúcar compor a cesta básica e as carnes não. Essa interpretação fere o próprio entendimento constitucional e programático do que compõe a cesta básica, à exemplo do “Programa Cozinha Solidária”, que instituiu as recomendações e princípios dos guias alimentares brasileiros do Ministério da Saúde, que, diz-se, definem as diretrizes oficiais sobre alimentação saudável para a população. Adivinhem só: lá consta a recomendação de consumo de carne como uma diretriz básica e saudável para uma saudável vida.
Por fim, o discurso altamente elitista que prejudica os mais vulneráveis sob a desculpa de penalizar os mais ricos. Para compreender a dinâmica da precificação das carnes, é importante entender que, basicamente, tudo o que vem do boi é aproveitado, assim como do suíno e do frango. A demanda pela carcaça inteira de um animal abatido se equilibra através dos preços dos diferentes cortes. Cortes menos nobres são mais baratos e os mais nobres custam mais. O que define a nobreza é a preferência do consumidor.
Exemplo prático: uma carcaça média produz aproximadamente 12,8 quilos de contrafilé e 2,5 quilos de picanha. É consenso que todo mundo gosta mais de picanha, então temos dois fatores aqui nessa análise: oferta e preferência (ou demanda). Em se tendo menos picanha e sendo ela mais desejada, não à toa, o quilo da picanha no atacado paulista custa R$ 58,00/kg e um contrafilé custa R$ 29,00/kg (cotação realizada pela Agrifatto em 02 de julho de 2024).
Ocorre que, considerando que a carcaça é composta por um volume maior de “carne de segunda”, então o maior volume consumido pelos brasileiros é, naturalmente maior para a carne de segunda linha — ou de dianteiros e ponta de agulha —, que são mais baratos que os cortes nobres do traseiro.
Ou seja, o brasileiro não come carne “chique” porque não gosta, mas porque não consegue acessá-la. Todos concordam comigo que taxar apenas esse produto traria um efeito de encarecimento? Certo. Essa é, portanto, cortina de fumaça do fator que determina o que pode e não pode ser taxado: que se estaria punindo ricos em benefício dos pobres. Na verdade, o pobre perde mais, já que tem o orçamento mais limitado quando se considera o orçamento doméstico.
Ou seja, como imposto aumenta o preço dos bens de consumo, taxar os cortes mais nobres (ou “chiques”) causaria um efeito de distanciamento desse produto ainda maior à população de classes média e baixa. Eu diria, inclusive, que essa pode ser considerada uma forma de reforçar a tão odiada desigualdade social.
Para referência: acém, paleta, peito, músculos dianteiro e traseiro e toda a costela compõem a maior parte da carcaça. São corte mais abundantes e menos desejados e, portanto, cujo preço é mais acessível.
A carne “intermediária” fica por conta do coxão duro, patinho, lagarto.
Já as carnes nobres, mais caras e desejadas, são o contrafilé, filé mignon, alcatra completa, coxão mole e fralda do traseiro. Se forem essas justamente as que o Lula pretendia taxar com alíquotas maiores, o efeito será o de dificultar o acesso do brasileiro médio aos cortes que prometeu durante o período eleitoral (o destaque foi a picanha).
É evidente que uma política taxativa não serve para beneficiar a população que consome mais carne de segunda, mas para, simplesmente, elevar a arrecadação de forma disfarçada de luta de classes.
Caso contrário, o que se defenderia é a desoneração de todas as carnes.
Infelizmente, a fome está grande e assinar um cheque em branco para aplacá-la não parece promissor.
***
Lygia Pimentel, colunista de The AgriBiz, é médica veterinária, economista e diretora-executiva da Agrifatto