Commodities

As tormentas das tradings de café podem estar longe do fim

Pré-RJ da Montesanto Tavares escancarou a crise vivida pelas tradings de café, um problema de capital de giro causado pela alta histórica nos preços

Crise das tradings de café

A crise da Montesanto Tavares, dona de algumas das mais importantes tradings de café do País que parece estar a caminho de uma recuperação judicial, escancarou o rombo que a disparada da commodity vem provocando no caixa das tradings, num descasamento de capital de giro que ameaça se espraiar por mais players.

Ao pedir uma proteção judicial contra os credores, a Montesanto Tavares (controladora de tradings como Atlântica e Cafebras) citou a escalada das chamadas diárias de margem com derivativos — feitos, em tese, como instrumentos de hedge — como o estopim de um problema financeiro que se arrastava há três anos, desde a quebra da safra brasileira colhida em 2022.

Há alguns anos, o grupo mineiro vem sofrendo com uma inadimplência excessivamente alta, em parte explicada pelas várias rolagens de produtores rurais que ficaram sem café devido à quebra de safra e prometeram entregar nos anos subsequentes.

Desde 2019, as tradings da Montesanto Tavares deixaram de receber 900 mil sacas — avaliadas em R$ 1,8 bilhão aos preços de hoje — de um total de 2,7 milhões de sacas compradas com entrega futura.

Sem receber do produtor e com clientes internacionais para atender, a Montesanto Tavares precisou comprar café de outros produtores para cumprir os contratos, pagando ainda mais caro.

Se a situação já não era fácil com os problemas de recebimento de café, o caldo entornou neste ano diante das necessidades constantes de caixa para ficar em dia com os derivativos.

Em geral, as tradings de café fazem a compra para entrega a prazo do café com um produtor e, para travar margem, ficam vendidas no mercado futuro. Nesses casos, as bolsas fazem o ajuste diariamente, o que significa que as tradings precisam colocar dinheiro se o café subir, o que está de fato ocorrendo numa intensidade impressionante. Só neste ano, o preço do café arábica subiu quase 60% na Bolsa de Nova York.

Pelos cálculos da Montesanto Tavares, a receita comprometida com os derivativos passou de apenas R$ 50 milhões em maio para quase meio bilhão em novembro, excedendo os recebíveis da companhia.

É um montante significativo para um grupo que fatura cerca de R$ 3 bilhões por ano. “As constantes chamadas de margem tornaram insustentável a estrutura de caixa de curto prazo”, argumentou a empresa, no pedido judicial para reestruturação de suas dívidas.

Tempestade perfeita

A conjunção dos astros foi, de fato, nefasta para o mercado de café. Depois da seca severa seguida por uma forte geada que afetou os cafezais brasileiros na safra 2021/22, o maior produtor mundial da commodity tenta se recuperar. Neste ano, a colheita foi razoável, mas ficou abaixo do esperado devido a problemas no tamanho dos grãos.

Para piorar, outros produtores relevantes também viram a sua produção afetada pelo clima: além da Colômbia, os produtores de café robusta Indonésia e Vietnã tiveram a produção frustrada este ano.

Os conflitos geopolíticos no Mar Vemelho também têm atrapalhado algumas rotas importantes de exportação de café, aumentando a demanda pelo produto brasileiro. E, por fim, a lei antidesmatamento da União Europeia vinha pressionando os preços em meio às expectativas sobre os efeitos das exigências no comércio global.

“O principal ponto é que, de 2021 até agora, os preços do café só subiram”, resume Guilherme Morya, analista do mercado de café do banco holandês Rabobank. “Num mercado extremamente volátil como estamos vendo, uma trading tem que estar muito bem estruturada. Quem estava mais exposto acabou sendo mais penalizado”.

Existem estruturas alternativas de mercado usadas para evitar o pagamento dos ajustes diários, mas cada um tem a sua estratégia ao operar os mercados futuros (e nem sempre essas estratégias estão claras). Por isso, os efeitos da disparada nos preços acabam sendo maiores em algumas empresas do que em outras.

A disseminação dos problemas

O grande receio no meio cafeeiro é que o caso da Montesanto Tavares não seja o único. Diversas fontes do mercado temem que concorrentes tenham problemas semelhantes, especialmente aquelas de pequeno e médio porte — sem capaz de resistir à tormenta.

Antes mesmo da pré-RJ da Montesanto Tavares, alguns problemas já vinham aparecendo. Há menos de um ano, a Mercon Coffee Corporation pediu recuperação judicial no Estados Unidos, com efeitos que se estenderam para o Brasil. À época, as dívidas da trading passavam de US$ 360 milhões.

Tradings de grande porte, como LDC e Olam, parecem mais protegidas da crise porque são diversificadas e possuem uma estrutura de capital mais sólida. Por outro lado, há relatos de tradings estrangeiras importantes perdendo as linhas de crédito no mercado bancário.  

“O efeito cascata é preocupante. Quem não tiver fluxo de caixa vai se complicar”, disse uma fonte que acompanha de perto a situação dos comercializadores de café no Espírito Santo.

Neste momento, donos de armazéns de café de menor porte estão em apuros, disse a mesma fonte. “Teve muito dono de armazém que especulou”, acrescentou, lembrando que o mercado de café ainda é pulverizado, com diversos traders de pequeno e médio porte operando.

Marcus Magalhães, diretor e analista da MM Cafés — um misto de corretora e consultoria — traduz o sentimento de parte relevante da cadeia produtiva do café. “Está todo mundo feliz com o preço em alta? Não! Todo mundo estressado”.

Mesmo entre os produtores, que em alguns casos fizeram margens de 70% graças à disparada do preço do café, há quem esteja ressabiado, seja porque vendeu mais barato ou ficou sem café suficiente para entregar, argumentou Magalhães.

A situação também não é nada trivial para as torrefadoras. Com exceção de gigantes mais capitalizadas, como JDE (dona da marca Pilão) e 3corações, há um grupo de indústrias de médio porte operando com margens comprimidas porque a disparada do café só foi repassada em parte para o varejo.

“As multinacionais têm como bancar essa defasagem. Agora, as pequenas e médias podem não ter, o que pode ser uma oportunidade para as grandes adquirem as menores em situação financeira difícil. A tendência é concentrar”, disse Bruno Giestas, da capixaba Real Cafés – uma das principais companhas de café solúvel do País.

Para outra fonte da indústria, a situação vivida pelo grupo Montesanto Tavares não pode ser vista como sistemática. Desde a safra 2021/22, afetada por uma seca severa e uma forte geada, muitas tradings reduziram suas posições em aberto, exatamente após o susto provocado por problemas de rolagem de entregas devido à quebra de safra.

“Antes, era comum as tradings trabalharem com contratos de longuíssimo prazo, para entrega em cinco anos, o que era muito arriscado. Na Bolsa, os contratos têm vencimento de até três anos”, diz. “A exposição era bem maior no passado”.

A próxima safra

Além dos problemas atuais, há um risco relevante para 2025. Apesar da vistosa florada dos cafeeiros brasileiros neste ano, as plantas vinham sofrendo tanto com a baixa umidade que muitas flores caíram e sinalizam uma safra potencialmente menor do que o esperado, disse Gil Barabah, analista da Safras&Mercados.

Ao que tudo indica, a relação entre oferta e demanda global de café pode ficar ainda mais apertada no ano que vem, especialmente porque a Ásia continua demandando mais café (a China, finalmente, se tornou um comprador importante).

Há duas semanas, o USDA (Departamento de Agricultura dos Estados Unidos) reduziu a sua estimativa para a safra 2024/25 do Brasil em 5,8%, para 66,4 milhões de sacas, devido ao clima adverso. Em maio, as temperaturas foram as mais altas da última década, e as chuvas ficaram abaixo da média.

“A quebra de safra é muito grande. Arrisco dizer que é a maior já registrada pelo café arábica no Brasil”, afirma Regis Ricco, diretor da RR Consultoria Rural, com sede em Minas Gerais e mais de 30.000 hectares atendidos. “As perdas são enormes em todas as regiões produtoras”, acrescenta o especialista, que atua há mais de 30 anos no segmento.

O Rabobank fará a sua primeira estimativa para a nova safra apenas no final de março, depois de percorrer as lavouras em um estágio mais avançado de desenvolvimento. Nos primeiros meses de 2025, portanto, a indefinição sobre a safra brasileira vai permanecer — e a volatilidade do mercado, continuar.

“O balanço de oferta e demanda tende a piorar. Quanto vai ficar justo, vai depender. Tudo é sentimento ainda, mas esse sentimento vem do clima ruim e desses reportes pós-florada, que não são muito positivos. O ambiente que se projeta na frente é de uma safra abaixo do potencial”, completou Barabah.