A chegada de Nelson Gomes ao comando da Raízen não é apenas um freio de arrumação para reduzir o nível de endividamento da gigante controlada por Cosan e Shell. À frente da maior fabricante de açúcar do mundo, o executivo precisa dar um choque de cultura — um processo complexo que deve levar um ano e meio para colher os resultados completos.
Ajustar a estrutura de capital é uma necessidade, claro, mas isso só será sustentável com a correção dos problemas que levaram a Raízen à atual situação, com um índice de alavancagem perigosamente alto para uma companhia que não tem gerado caixa suficiente para tocar os planos multibilionários de investimentos e, ao mesmo tempo, honrar o passivo financeiro, mais salgado com a Selic nas alturas.
O diagnóstico da situação, compartilhado entre os controladores, aponta para a cultura excessivamente descentralizada que se consolidou na Raízen durante a gestão de Ricardo Mussa, que liderou a companhia de 2020 até novembro deste ano, quando foi tirado da posição.
“Mussa é muito bom em delegar, mas tinha muita dificuldade em cobrar”, disse uma das diversas fontes que conversaram com The AgriBiz nas últimas semanas. Nesse ambiente, os quatro vice-presidentes de negócios (energia e renováveis; mobilidade; trading; etanol e açúcar e bioenergia) atuavam muito soltos, perdendo sinergias na atuação conjunta entre as áreas.
O risco da descentralização
Algumas das perdas incorridas pela Raízen nos últimos tempos foram atribuídas a esse ambiente sem cobrança e com pouca interação entre as áreas. Um exemplo recente é um prejuízo de R$ 200 milhões na venda de óleo combustível (oil fuel) reportado no último balanço trimestral.
“Foi um erro primário”, disse outra fonte próxima à companhia. Nesse caso, o problema surgiu em um contrato com a petrolífera 3R para o fornecimento de óleo combustível, um produto usado por cliente B2B em diversas aplicações, desde aquecimento de fornos até embarcações.
A Raízen havia assegurado o fornecimento do óleo combustível produzido pela 3R na refinaria de Clara Camarão (RN), mas não tinha as licenças da ANP para operar as bases que comercializariam o produto. Com esse descasamento, precisou exportar o óleo combustível a um preço mais baixo.
O caso do contrato de oil fuel está longe de ser o único exemplo. A Raízen Power, negócio que reúne de geração distribuição de energia e recarga de veículos elétricos (Shell Recharge), também opera em uma lógica totalmente paralela, com poucas interações, disseram as fontes.
Durante a gestão Mussa, uma queixa frequente esteve relacionada à forma como a Raízen passou a operar o negócio de trading, que se tornou um negócio em si, o que não estava nas pretensões de Cosan e Shell.
Originalmente, a trading da Raízen existia para funcionar como uma forma de apoio ao negócio do grupo, assegurando o suprimento de combustíveis para a operação de distribuição da companhia.
Foi assim durante a gestão dos dois primeiros CEOs da Raízen (Vasco Dias e Luis Henrique Guimarães), mas Mussa entendia que a trading poderia operar de forma mais autônoma.
Nesse caminho, criticou uma fonte graduada, havia um risco de que o modelo de gestão ficasse mais próximo da lógica do risco direcional — apostando na alta ou baixa de uma commodity, como é usual na operação das tradings strictu sensu.
O choque está a caminho
Diante dos problemas culturais, não restava outra saída à Cosan e Shell que não a troca do CEO, que foi anunciada em 22 de outubro e efetivada em meados de novembro, depois da divulgação do balanço do segundo trimestre.
Escolhido para a missão, Nelson Gomes é o executivo talhado para o desafio, disseram analistas e pessoas próximas à companhia. Egresso da Exxon, onde se formou em uma cultura de gestão guiada por processos, o executivo já passou por diversas companhias da Cosan, incluindo Compass, Comgás e, mais recentemente, a própria holding.
Em menos de dois meses no cargo, Gomes promoveu diversas mudanças no alto escalão. Paula Kovarsky, então vice-presidente de estratégia e sustentabilidade da Raízen, foi a primeira a sair.
Na semana passada, o executivo anunciou a nova diretoria executiva, nomeando Ricardo Lewin como vice-presidente de estratégia e M&A. Com 16 anos de Cosan, o executivo era o CFO da holding de Rubens Ometto na época da bilionária aquisição de uma participação na Vale.
Leonardo Gadotti Filho, um velho conhecido de Gomes desde os tempos de Exxon, regressou à Raízen, onde já havia trabalhado na criação do negócio de distribuição e trading. Agora, Gadotti Filho será vice-presidente de mobilidade no Brasil, ficando responsável pela distribuição de combustíveis e lubrificantes.
O longo processo
Depois de ajustar a diretoria-executiva, a expectativa é que a gestão Gomes promova um enxugamento do quadro. Até pela excessiva descentralização anterior, a companhia ficou muito “inchada”, disseram duas fontes. Ontem, o colunista Lauro Jardim, de O Globo, relatou que a Raízen prepara o desligamento de algo entre 25 e 30 executivos, um terço do total.
“O espaço para cortar despesas é muito grande. Só isso já vai trazer um resultado importante”, disse uma fonte familiarizada com a Raízen. Segundo essa mesma pessoa, o enxugamento de gastos era praticamente impossível na estrutura anterior, uma vez que cada vice-presidente dominava seu “feudo”. Agora, o jogo parece estar mudando.
A virada da Raízen, no entanto, vai levar algum tempo para se concretizar, voltando a ter uma companhia com resultados estáveis e previsíveis. Estima-se que os resultados completos só aparecerão em um ano e meio. Nos primeiros seis meses, há uma fase natural de ajustes, cujos resultados só vão aparecer depois.
Até mesmo a monetização de ativos, o que ajudará a reduzir a alavancagem, leva tempo. “Para vender com qualidade, não é rápido”, argumentou outra fonte.
Um exemplo é a provável venda dos projetos de geração distribuída, com a qual a Raízen poderia angariar R$ 1 bilhão, segundo a jornalista Mônica Scaramuzzo, do Valor Econômico. Antes de vender, os projetos precisam ficar prontos, o que pode levar alguns meses.
Nesse meio tempo, a Raízen poderia ser mais ágil na venda dos estoques de etanol, liberando um capital de giro essencial enquanto a casa ainda precisa ser arrumada.
O dilema do E2G
Soluções mais criativas também não emplacam do dia para noite. A ideia de criar uma joint venture nos negócios de E2G (etanol de segunda geração), trazendo um sócio, é uma delas.
Para um analista, trazer um sócio financeiro poderia fazer sentido para o negócio, mas as dúvidas que pairam sobre o futuro do etanol de segunda geração poderia ser um entrave.
Âncora da tese que justificou o IPO da Raízen, o E2G demandou um capital monstruoso de investimentos (cada usina custa, em média, R$ 1,2 bilhão), mas os projetos ainda estão abaixo do retorno esperado pela Cosan.
Não à toa, a Cosan já havia sinalizado que os novos projetos de E2G seriam desacelerados. “Estamos neste momento debruçados sobre uma revisão do plano de negócios da empresa, um trabalho que nós e a Shell começamos juntos há meses”, disse Marcelo Martins, CEO da Cosan, em uma entrevista concedida ao Brazil Journal em 22 de outubro.
Nessa revisão, a decisão dos controladores foi limitar as usinas de E2G às seis plantas que estão em obras ou já foram inauguradas, apurou The AgriBiz. Essas unidades já são suficientes para honrar os contratos que a companhia possui com a Shell e outros clientes. A Raízen até já adiantou R$ 3 bilhões desses contratos.
Com essa revisão, duas usinas de E2G (Caarapó, em Mato Grosso do Sul, e Tarumã, em São Paulo), que estavam em fase de projeto, serão engavetadas até que o cenário mude ou os retornos se provem.
É um cenário bastante diferente da euforia que tomou conta da Raízen há não muito tempo. No IPO, a companhia chegou a falar em ter 20 usinas até 2030. “Três plantas por ano virou nosso padrão mínimo”, chegou a dizer Mussa, em um encontro com investidores.
Agora, as perspectivas mudaram radicalmente. “Isso está fora de cogitação”, assegurou uma fonte. Para essa mesma pessoa, a Raízen pode ter se desconectado do espírito de Cosan e Shell ao buscar o crescimento a qualquer custo, mas isso é coisa do passado.
Com o portfólio de ativos que possui, o que lhe dá a liderança inconteste em açúcar e etanol e uma posição de destaque na distribuição de combustíveis, a Raízen julga ter ativos irreplicáveis. O tropeço até pode ter sido grande, mas a companhia está mais do que preparada para se reerguer. É a aposta de Cosan e Shell.