Pecuária

O futuro das exportações brasileiras de carne bovina para a China

"Já podemos imaginar que a investigação da China vem aí para justificar uma nova barreira comercial contra a carne brasileira"

China carne

Em mais um recorde histórico, o Brasil exportou 2,89 milhões de toneladas de carne bovina em 2024. Foram quase US$ 13 bilhões, uma alta de 21,3% registrada para o faturamento. Foram 157 países compradores. Os dados são do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC).

A China, isoladamente, levou 46% desse volume, uma participação que concentra alto risco, dada a proporção dessa exposição e a instabilidade causada por alguns aspectos do acordo comercial, como já foi testemunhado em outras ocasiões. Tais aspectos, entretanto, não impediram que esse mercado se desenvolvesse fortemente na última década, como os números aqui expostos testemunham.

Em 2015, quando foi firmado o primeiro acordo comercial de intercâmbio entre os países, a China habilitou inicialmente 15 plantas processadoras de carne para a exportação direta para aquele país, mas as vendas só pegaram pressão mesmo após um surto de peste suína africana (PSA) dizimar quase metade do plantel suinícola do gigante asiático, elevando rapidamente a demanda por todo tipo de proteína animal, incluindo a carne bovina. Foi a fagulha necessária para que ocorresse o que profetizou meu avô décadas atrás: “imagine só se cada chinês comesse mais um bifinho de carne bovina por semana…”

Pois bem, crescimento populacional considerado até 2019, o aumento do PIB per capita e a praga que recaiu sobre a produção de suínos na China foram a combinação necessária para que isso acontecesse.

E, considerando um país de dimensões continentais como a China, porém cujos recursos hídricos e territoriais já estão assoberbados (a área potencial já ocupada com irrigação é de 99,8%, enquanto no Brasil capta menos de 1% do volume de águas de superfície disponível), caberia a outro gigante de proporções continentais – mas ainda com um potencial monstruoso a ser desvelado – aplacar essa demanda. E essa tarefa coube claramente ao Brasil.

Por isso, em 2019 as exportações engataram de vez e foram habilitadas outras 24 plantas frigoríficas, totalizando 39 unidades aptas a atender as necessidades do acordo comercial firmado entre as partes.

Em 2023, cinco novas habilitações.

Até que em março de 2024 foram 24 plantas habilitadas de uma só vez, ou 55% de expansão no número de plantas frigoríficas habilitadas para exportar carne bovina para a China. Um ponto interessante é que, quando falamos de capacidade produtiva, estimativa da Agrifatto indica que houve um impacto de 58% de aumento. Isso porque algumas das plantas habilitadas nessa leva possuem uma incrível capacidade de abate acima de 2 mil cabeças/dia.

Em paralelo, uma análise de longo prazo mostra que houve expansão do consumo de carne bovina chinês nas últimas décadas estimulada pelo aumento do poder de compra no país. O PIB per capita do país subiu a uma taxa de crescimento anual composta (CAGR) de 23% e, para atender à demanda, o mercado doméstico passou a absorver quase 12 milhões de toneladas em 2024 contra as 6 mil toneladas consumidas internamente em 2008.

Isso só aconteceu porque houve uma expansão de 32% na produção doméstica, de 6,1 para 7,8 milhões de toneladas, de acordo com o Departamento de Agricultura Norte-Americano (USDA), e todo um desenvolvimento do mercado importador, que era praticamente insignificante então, hoje responsável por comprar 3,8 milhões de toneladas ao ano dos países parceiros. O Brasil representa 45% das importações de carne bovina in natura do país.

Um parêntesis: Em 2020, o governo chinês estabeleceu o objetivo de atender 85% do seu consumo interno de carne com produção própria até 2030. Mas passados cinco anos desde essa proposição, a meta ainda parece distante. As importações foram responsáveis por 33% de todo o consumo chinês em 2024.

Mais recentemente, a China vive um grande desafio para continuar crescendo. A taxa anual de aumento do PIB caiu de 12% no início dos anos 2000 para os atuais 1-2% ao ano, o que traz um desafio para a expansão do consumo. Um dos motivos é o desafio da taxa de natalidade do país, que em 2023 atingiu seu recorde negativo de 6,39 nascimentos por mil pessoas. Apesar dos esforços do governo para incentivar os casais a terem mais filhos, a rápida urbanização do país, bem como o alto custo de vida e os resquícios culturais da política do filho único, que vigorou de 1980 ao recente ano de 2015, têm tornado os esforços inócuos.

Outro problema é o desgaste das políticas de incentivo à construção civil, que chegou à saturação com a queda do preço dos imóveis, culminando na suspensão de taxas atrativas ao crédito, além de restrição sobre os mesmos. E não poderia ser diferente, dado que a baixa taxa de natalidade não justificaria pela lógica um incentivo ativo à construção civil. O resultado prático acaba sendo caminhões de dinheiro queimados à toa.

Para tentar reverter a situação, o governo chinês tem adotado algumas medidas como expandir os gastos em infraestrutura e subsídios para empresas de veículos elétricos e painéis solares, mas elas não têm sido suficientes.

O ponto é que, com a expansão de 26% na produção interna de carne e com habilitações que levaram a uma importação de 3,8 milhões de toneladas em 2024, o preço interno do gado na China ganhou volatilidade e começou a cair.

Isso desencadeou gravíssimas preocupações por parte dos pecuaristas chineses, que não estão conseguindo cobrir seus custos operacionais desde a metade do ano passado.

Eis que chegamos aos últimos fatos: em 28 de dezembro, o Ministério do Comércio da China deu início a uma “investigação”, nas próprias palavras do documento divulgado, sobre a importação de carne bovina pelo país no período de 2019 ao primeiro semestre de 2024. ‘Investigação”, nesse caso, é um termo ruim que poderia facilmente ser substituído por “análise”, visto que não há qualquer sugestão de que o Brasil tenha quebrado alguma regra do acordo comercial.

Seja como for, o processo teria como finalidade a aplicação ou ajuste de salvaguardas e, para tal, busca entender qual teria sido a influência das importações de carne bovina brasileira sobre os preços praticados internamente aos produtores chineses. Por fim, compreender como isso influi na produção doméstica, que, a priori, deveria buscar a independência e autossuficiência. Segundo o documento, o processo deverá durar oito meses.

Houve também a sugestão de que a tarifa de 12% ad valorem seria majorada a até 20%, caso houvesse o entendimento de que houve prejuízo à produção doméstica. Isso certamente encareceria a carne importada aos chineses, mas essa ainda é informação a ser confirmada.

E, juntando lé com cré, já podemos imaginar que venha novidade por aí para justificar uma possível futura nova barreira comercial ou dificultação à monstruosa competitividade brasileira e seus efeitos sobre os pecuaristas chineses.

É o mundo lutando mais uma vez com o potencial produtivo brasileiro e sua consequente capacidade produtiva.

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Lygia Pimentel, colunista de The AgriBiz, é médica veterinária, economista e sócia fundadora da Agrifatto