Boi gordo

Onde reside o dissenso sobre o momento de virada do ciclo pecuário?

O debate precisa responder à pergunta: qual é a proporção de fêmeas que pode ser abatida sem comprometer o rebanho?

Boi gordo Mato Grosso Poconé

Recente matéria do jornalista Luiz Henrique Mendes, publicada aqui no The AgriBiz, mencionou resumidamente as divergências em relação ao momento da virada do ciclo pecuário. Como o assunto é complexo, acho interessante aprofundar. Nesse ponto, há duas questões envolvidas.

A primeira, mais simples, trata do ponto de inflexão do ciclo. Parte dos estudiosos considera esse ponto apenas quando é possível mensurar a mudança no padrão de abate, com o aumento ou a redução da proporção de fêmeas sendo demonstrado pelas estatísticas. De acordo com essa ótica, a mudança no ciclo estaria próxima de acontecer, visto que o perfil de abate ainda não se alterou em relação à proporção de fêmeas.

Outros analistas, no entanto, entendem que a virada ocorre antes de aparecer nas estatísticas, quando as condições do mercado já são suficientes para iniciar essa mobilização, seja aumentando ou reduzindo a proporção de fêmeas no abate.

As decisões dos produtores são reativas ao mercado e não estratégicas, formuladas a partir de análise criteriosa das estatísticas. Em outras palavras, a mudança no perfil de abate será consequência da alteração do ciclo e não um evento catalisador. O que dá início a isso é o estímulo ou desestímulo relacionado a preços ou margens na pecuária. Dentro dessa lógica, a nova fase de alta teria se iniciado em meados do terceiro trimestre de 2024.

Contra essa ponderação, é possível argumentar que os preços se alteram quando começa a sobrar ou escassear fêmeas, o que provocaria a mudança na composição do abate. No entanto, esse raciocínio desconsidera que a pecuária nunca chega ao ponto de escassez de fêmeas para o abate.

No final de 2024, por exemplo, estima-se que, no rebanho brasileiro, tenham sobrado mais de 18 milhões de fêmeas adultas, que não geraram bezerro desmamado e, claro, não foram abatidas. Para essa análise, foi considerado o rebanho de 194 milhões de cabeças e não o de 238 milhões, conforme dados da Pesquisa Pecuária Municipal (IBGE) de 2023.

Há pouco mais de 10 anos, a estimativa de fêmeas que não geravam bezerro e nem eram abatidas estava entre 25 e 29 milhões de cabeças. Essa observação nos leva ao segundo ponto de dissenso entre os estudiosos de mercado, uma questão um pouco mais difícil de avaliar.

Qual é a atual proporção de fêmeas no abate que definiria retenção ou liquidação de matrizes? Para responder a esse questionamento é necessário passar por diversos pontos sobre o nível de produtividade do rebanho brasileiro.

A produtividade na pecuária vem aumentando de forma inexorável desde o início dos anos 1990. No entanto, a atividade de cria, responsável pela produção de bezerros desmamados, foi a mais lenta nesse processo até que fosse fortemente estimulada, o que ocorreu entre os anos de 2019 e 2022.

Nesse período, com o rápido aumento das exportações para a China, que exige carne oriunda de animais jovens, a valorização do bezerro no mercado acelerou a implementação de estratégias reprodutivas mais sofisticadas nas propriedades.

Entre 2018 e 2021, a relação entre bovinos de até 12 meses e fêmeas com mais de 24 meses saltou da faixa de 52% para cerca de 61%, consequência do melhor desempenho reprodutivo das fêmeas. Em outras palavras, passou a ser necessária menor quantidade de vacas para gerar a mesma quantidade de bezerros.

Além do ganho em eficiência reprodutiva, o ciclo de produção passou a ser mais rápido. Atualmente, entre a concepção de uma vaca até o abate do animal que irá nascer, são necessários entre 40 e 42 meses, em média. Há cerca de 30 anos, o mesmo processo variava entre 60 e 65 meses. Hoje, há sistemas de produção que chegam a completar todo o ciclo em menos de 24 meses.

O resultado dessas mudanças na estrutura do rebanho e na melhoria dos indicadores produtivos é a possibilidade de manter menor quantidade de fêmeas no plantel, o que possibilita abater uma proporção maior delas.

Em sua matéria, Luiz Henrique Mendes cita os dados do IMEA (Instituto de Defesa do Mato Grosso), relatando que o rebanho de fêmeas acima de 24 meses caiu para 13 milhões de cabeças, o menor desde 2019. Essa quantidade de fêmeas acima de 24 meses representa 39,6% do atual rebanho mato-grossense, segundo o próprio IMEA.

Na análise da Athenagro — que permitiu concluir uma sobra de 18 milhões de fêmeas acima de 24 meses que não geraram bezerros desmamados e nem foram abatidas em 2024 —, a participação média da categoria de fêmeas em idade reprodutiva é de 42,9%, um pouco acima do registrado para o Mato Grosso. Por outro lado, o nível de produtividade do estado é 11,5% superior do que a produtividade média Brasil, segundo estimativas da Athenagro.

Em recente exercício considerando os atuais indicadores zootécnicos e a estratificação do rebanho, concluímos que, no Brasil, as fêmeas poderiam compor até 47% do abate sem comprometimento do rebanho. Nessa análise, as matrizes representariam 38% do total, um pouco abaixo do atual número observado no Mato Grosso.

Por fim, mesmo que, do ponto de vista técnico, seja possível abater proporções maiores de fêmeas, isso não significa que vá ocorrer. Historicamente, a decisão de segurar fêmeas no rebanho tem como objetivo aumentar a produção de bezerros. Pelos avanços dos últimos anos, espera-se que os produtores sejam menos tolerantes com vacas vazias, ou seja, aquelas que não entraram em gestação e, portanto, não irão gerar bezerros no ano. Nesse caso, mesmo com o esforço em aumentar a produção de bezerros, a tendência é que a proporção de fêmeas no abate continue em proporções maiores do que em outras fases de alta.

É importante ressaltar que esse comportamento não ocorreu entre 2019 e 2021, quando a retenção de fêmeas seguiu parâmetros históricos do ciclo pecuário, com forte queda no abate e, consequentemente, na produção de carne. Ainda assim, é preciso levar em consideração as drásticas mudanças que ocorreram de forma muito acelerada naquele período. Além dos movimentos típicos, as expectativas criadas pela expansão de demanda chinesa acabaram por desencadear uma corrida de investimentos na pecuária. Muita gente entrou na atividade, reforçando o movimento de retenção.

Para essa nova fase de alta, é provável que ocorra um pouco de “tudo ao mesmo tempo”. Há os produtores que irão reter fêmeas vazias, mantendo o comportamento de ciclos anteriores, e há aqueles que irão adotar uma postura mais técnica, descartando as que falharem e acelerando a sua substituição por animais mais jovens. Ainda assim, no balanço, a pecuária trabalharia com proporções maiores de fêmeas no abate, se comparado a outros períodos de alta no ciclo.

Se confirmada, trata-se de uma nova característica da modernização da produção, visto que o setor continuará ofertando animais de forma mais constante ao mercado. Mesmo que a oferta se reduza, não teríamos quedas significativas na produção.

Portanto, o que está considerado como dissenso em relação ao timing do ciclo seria, na verdade, uma falha por não considerar os efeitos de uma provável mudança tecnológica na pecuária. O debate precisa responder à pergunta: qual é a proporção de fêmeas que pode ser abatida sem comprometer o rebanho?