Regulação

De olho em Gilson Bittencourt: o dia seguinte ao choque nos CRAs e LCAs

As reações do mercado à decisão do CMN, que, numa tentativa de aumentar a arrecadação, fechou brechas na captação de CRAs e dificultou emissão de LCAs

Para os banqueiros que participaram de um encontro com Gilson Bittencourt, subsecretário de política agrícola do Ministério Fazenda, no segundo semestre do ano passado, a decisão tomada ontem à noite pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), restringindo os lastros dos títulos incentivados, não deveria surpreender.

Naquela reunião, os executivos dos bancos batiam na porta do Ministério da Fazenda com outra pauta: a mudança que o CMN havia feito no direcionamento das exigibilidades das Letras de Crédito do Agronegócio (LCA), levando os bancos a fazerem operações em que incide IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) — e, com isso, ajudando na arrecadação da União.

Se alguns sonhavam com a reversão da medida, saíram de lá com uma mensagem clara. As mudanças não seriam as únicas. Para bom entendedor, ficou claro que os papéis incentivados estavam na mira.

Não só isso. Bittencourt não era alguém de perfil voluntarista que tomaria medidas atabalhoadas, disse uma fonte que acompanhou a conversa. “Ele é inteligente e sabe o que está fazendo. Pode ter certeza que vai fechar todas as brechas”, narrou ao The Agribiz.

Gilson Bittencourt, subsecretário de política agrícola da Fazenda, foi secretário de Planejamento no governo Dilma | Crédito: Agência Senado

Com a mais recente decisão, o CMN desagradou a alguns agentes do mercado, dificultando as captações de LCAs dos bancos e restringindo o rol de companhias capazes de emitir CRAs, o que tende a aumentar os desafios de originação de crédito dos Fiagros de papel.

Porteira fechada

Entre advogados e securitizadores que trabalham na estruturação de CRAs, a decisão do CMN recebeu alguns petardos, mas até os mais críticos concordam que muitos excessos precisavam ser corrigidos.

“É um retrocesso. Uma decisão que vai na contramão do que a CVM estimula, de fazer uma transição fluída na regulação”, disse Fábio Giorgi, sócio do Giorgi Martins Advogados — a banca de Londrina assessora gestoras de Fiagro como a Kijani e empresas como a Agrogalaxy.

Giorgi reconhece que o mercado estava exagerando na emissão de CRAs, com tomadores que tinham relação distante com o agronegócio se beneficiando dos papéis isentos.

Para evitar que isso ocorra, o governo determinou que só quem faz mais de dois terços da receita bruta no agronegócio pode emitir, fechando as portas para CRAs de companhias de fast food, como Burger King e Madero, locadoras de equipamentos como a Vamos e bancos como BTG Pactual e ABC.

O mesmo raciocínio vale para os CRIs. A norma antiga permitia operações para emissores como a Rede D’Or, que usou os recursos para bancar aluguéis e não para fomentar a atividade imobiliária. “Tinha muita bagunça mesmo”, reconheceu um gestor de crédito estruturado.

“Estavam colocando muita coisa para dentro do CRA que era no mínimo estranho e, no contexto atual, o CMN resolver apertar a corda por causa de riscos associados”, comentou uma fonte de um grande escritório de advocacia.

Nesse sentido, a mudança pode trazer impactos positivos no longo prazo para as empresas agrícolas. “Precisamos ver o copo meio cheio. Pode ficar mais complexo no início, mas espero que acabe incentivando o crédito para quem tem relação direta com o agro”, disse Bruno Santana, fundador da Kijani (gestora que administra um Fiagro de R$ 680 milhões).

Pausa nas operações

Mas o governo não ficou só nisso. Além de fechar a brecha que beneficia empresas alheias ao agro, o CMN proibiu que operações de reembolso de despesas façam parte do lastro dos CRAs, dificultando operações legítimas de financiamento da agricultura, criticou Giorgi.

“Imagina que você é uma cerealista e compra soja. Então, pode emitir CRAs. Você podia usar para se reembolsar de despesas que teve em até 24 meses para atrás. Agora, só vai poder emitir para fazer o pagamento futuro de despesas, como grãos e estoques”, explicou o advogado.

No ano passado, cerca de 30% dos CRAs que o escritório de Giorgio ajudou a estruturar estavam lastreados em reembolso de despesas, o que agora está vedado. Com a nova regulação, o mercado deve passar por um freio de arrumação até se ajustar.

“Tinha muita operação em andamento que cairia dentro dessas estruturas. Algumas não serão possíveis, outras a gente consegue reestruturar. As próximas semanas serão de discussões internas, mas, num primeiro momento, é possível que haja uma pausa nesse mercado”, disse Letícia Galdino Wanderley, sócia das áreas de fundos de investimento, gestão de recursos e mercado de capitais do Demarest.

Juros reagem

A decisão do CMN já se traduziu nos preços dos papéis incentivados no mercado secundário. As debêntures incentivadas, por exemplo, sofrem uma redução do spread da ordem de 20 a 40 pontos-base, disse Lucas Visconti, head da mesa de renda fixa da RB Capital.

Ontem, por exemplo, a debênture incentivada emitida pela Jalles Machados para financiar investimentos em cogeração negociava a IPCA + 7,07% ao ano. Nesta sexta-feira, após o impacto da decisão do CMN, as ofertas de venda estavam a 6,02%. Esse título vence em 2033.

Com menos oferta de papéis incentivados para uma demanda que tende a crescer, a tendência é que o spread sobre os títulos do Tesouro também caia nos mercados de CRA e CRI, o que pode gerar ganhos de capital para quem detém esses papéis hoje.

“São poucos os papeis triple AAA listados genuinamente do agro. No Fiagro da FGA, temos uma posição boa de Jalles Machado. E acreditamos que deve refletir positivamente nos demais papeis, principalmente a parcela mais líquida com rating público”, concordou Luis Gustavo Torrano Correa, sócio-fundador da FGA.

Vale lembrar que a demanda pelos títulos incentivados já vinha crescendo, com gestores de fortunas alocando mais nesse tipo de papel após o início da cobrança do come-cotas nos fundos exclusivos.

Teoricamente, as empresas que obtêm mais de 75% com o agro (Jalles Machado, São Martinho e Boa Safra, por exemplo) podem se beneficiar, conseguindo juros mais atrativos simplesmente porque o número potencial de ofertantes de CRAs com bom rating ficou mais restrito.

Do outro lado, as empresas que vinham conseguindo emitir CRA e agora ficarão de fora terão de pagar mais para levantar crédito no mercado, aumentando os custos em algo perto de 15%, calculou uma fonte.

Para os gestores de Fiagro, uma dificuldade pode aparecer na hora de rodar os papéis da carteira, com mais desafios na alocação. Esse é o grande risco para o crescimento da indústria, que angariou mais de 470 mil cotistas desde que foi criada.

Gestores de Fiagro que usarem CPR como lastro, o que vai ser possível assim que a nova regulação da CVM entra em vigor, poderão se aproveitar desse momento.

O aperto nos bancos

De todas as medidas anunciadas pelo CMN, os maiores atingidos certamente são os bancos. “Os bancos já vinham reclamando por conta das alterações no manual no crédito rural e agora estão reduzindo ainda mais as hipóteses para emissão”, disse uma outra fonte de um grande escritório de advocacia.

Nas LCAs, o governo determinou que o prazo mínimo de vencimento para esse instrumento seja de nove meses, e não mais de 90 dias, o que pode afastar alguns investidores. As LCAs representam em média 50% dos títulos de captação de bancos grandes, segundo a mesma fonte, que é bastante próxima às instituições.

Várias mudanças também foram feitas no lastro que o banco pode usar para captar uma LCA. Antes, até mesmo uma operação de crédito rural com recursos obrigatórios do Plano Safra (com algum subsídio do governo) podia ser usado como lastro. Agora não mais. ACCs e debêntures também não poderão mais ser usadas para tal.

“Essa redução de lastro irá levar a uma menor oferta de LCA”, concorda Alan Glezer, cofundador e diretor financeiro da Agrolend, startup que recebeu a licença de financeira no ano passado, passando a captar LCAs.

Em comparação a um banco tradicional, o impacto sobre as emissões da Agrolend deve ser pequeno, disse ele. Atualmente, menos de 15% das LCAs emitidas pela startup tem vencimento de 90 dias. A startup também só usa CPR financeira como lastro, o que continua permitido.

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As duas resoluções do CMN para limitar o lastro dos papéis incentivados foram elaboradas a pedido do Ministério da Fazenda.

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Certamente, vai levar algum tempo até que todos os impactos das medidas do CMN sejam digeridos. Mas se vale alguma lição, é bom prestar atenção nas mensagens de Gilson Bittencourt. Elas costumam chegar ao bolso.