“Imagina tirar o motor do avião com ele decolando”. A frase, vinda de um interlocutor que acompanha a trajetória da Brasil BioFuels (BBF) nos últimos anos, ilustra a situação da maior produtora de óleo de palma do país, um negócio que já chegou a faturar mais de R$ 1 bilhão antes de mergulhar em uma crise.
Durante os tempos de boom do óleo de palma, a companhia fundada pelo empresário Milton Steagall acelerou os investimentos, com planos audaciosos que iam da expansão do plantio de palma ao cultivo do cacau (a BBF já falou em se tornar a maior produtora de cacau do mundo), passando por uma aposta em bioquímica verde e na produção de matéria-prima para a produção de SAF, em parceria com a Vibra.
Há menos de um ano, a companhia parecia muito longe de uma crise. Com um plano de investimentos sólido e perspectivas promissoras, a BBF tinha crédito na praça, ostentando o grau de investimentos pela agência de classificação de risco Fitch, com rating BBB-.
A empresa também se relacionava com alguns dos principais bancos, tomando crédito em instituições como Itaú, Safra, Banco da Amazônia, ABC, Vectis e Finep, entre outros. Em meados do ano passado, a BBF preparava a emissão de um CRA de até R$ 130 milhões coordenado pelo Itaú BBA. Até que tudo deu errado.
O conflito no Pará
Às vésperas da Cúpula da Amazônia, em 4 de agosto, um conflito entre indígenas e a segurança privada da fazenda da BBF na região de Tomé-Açu, nordeste do Pará, terminou com um jovem indígena do povo Tembé baleado.
Três dias depois, um novo conflito e mais três indígenas foram baleados pelos responsáveis. Não houve vítimas fatais. As imagens, que chegaram a ser veiculadas pelo Jornal Nacional, mostram os indígenas depredando a guarita de entrada da BBF. Tratores também foram incendiados.
As disputas com os indígenas são de longa data, com troca de acusações entre as partes. Na Justiça, a BBF acusou as associações indígenas da região de tentativa de extorsão, cobrando R$ 1 milhão em troca do fim das invasões das fazendas de palma que pertencem ao grupo (a companhia chegou ao Pará em 2021, após compra da Biopalma, que pertencia à Vale).
No Conselho Nacional de Direitos Humanos, o ataque aos indígenas foi a gota d’água. Em 8 de agosto, o órgão enviou uma recomendação a diversas autoridades solicitando punições à BBF. Entre os destinatários, estavam os bancos que financiavam a companhia. O conselho recomendou que eles cessassem os empréstimos.
Ali, a crise financeira se instalou.
Sem crédito
Depois da recomendação, o crédito para a BBF secou. O Itaú desistiu de liderar o CRA de R$ 130 milhões, representando um primeiro revés. Os demais bancos também fecharam as torneiras.
A companhia ainda tentou uma alternativa de captação, contratando a RB Investimentos para estruturar o papel. Os assessores abordaram alguns gestores de crédito para testar o apetite, mas já não havia clima para uma operação.
Como resultado, o caixa começou a ser espremido. Para piorar, as condições de mercado se tornaram adversas. Principal origem das receitas da companhia, o óleo de palma sofreu uma brutal redução de preços. No porto de Roterdã, os preços do óleo de palma saíram de mais de US$ 2 mil por tonelada para menos de US$ 800 em meados de 2023.
Da receita total da BBF, 78,7% vinham das vendas de óleo de palma, 19,9% da energia elétrica, 1,2% do biodiesel, e 0,2% de soja. No ano passado, a empresa fez uma receita líquida da ordem de R$ 920 milhões, com um Ebitda de R$ 305 milhões (margem de 33,6%) e prejuízo de R$ 116 milhões, mostra uma apresentação feita a potenciais financiadores e obtida por The AgriBiz.
Em dezembro, o índice de alavancagem (relação entre dívida líquida e Ebitda) atingiu 2,6 vezes, o que não é um problema em si. O grande problema é a falta de recursos novos.
Com a crise de liquidez, a BBF ingressou com o pedido de uma cautelar na Justiça em 8 de fevereiro, pedindo a suspensão das cobranças das dívidas por 60 dias. A ideia é reorganizar os passivos, negociando com os principais credores, segundo nota da empresa encaminhada ao The AgriBiz (leia a íntegra no final da reportagem).
Efeito colateral no VCRA11
O juiz atendeu o pedido da companhia apenas parcialmente. As dívidas com garantia fiduciária não estão contempladas na suspensão. Nessas condições, está o Fiagro da Vectis (VCRA11), que emprestou R$ 55 milhões à BBF por meio de um CRA emitido em 2022. Parte do principal já foi pago e a dívida agora soma R$ 47,9 milhões.
Com os recursos do CRA, a BBF concluiu as obras de uma usina a biodiesel em São João da Baliza (RR), tendo a própria unidade em garantia fiduciária. Essa usina abastece a população local com energia elétrica. A usina tem um contrato de venda de energia de longo prazo (PPA) de R$ 600 milhões.
Em sua última carta mensal aos investidores, os gestores da Vectis — a asset opera o Fiagro em parceria com a consultoria Datagro — informou que declarou o vencimento antecipado do CRA da BBF, mas deixou uma porta aberta para negociação com a companhia.
Procurada pela reportagem, a Vectis Gestão informou, em nota, “que tem exposição à BBF e que tem garantias fiduciárias suficientes para fazer frente ao crédito”.
Na bolsa, as cotas do fundo sofreram com o pedido de suspensão do pagamento das dívidas pela BBF, ainda que a gestora tenha suas garantias protegidas. Atualmente, as cotas do VCRA11 são negociadas a 74% do valor patrimonial de R$ 470 milhões.
O aperto da Aneel
Em meio aos problemas, a BBF pode sofrer mais um revés. Na semana passada, uma reportagem do Capital Reset revelou que a BBF está prestes a perder seis concessões de usinas termelétricas no Pará.
Ainda antes da crise financeira, a companhia havia se comprometido a converter as usinas para que elas funcionassem com biodiesel a partir de 1º de abril de 2023, mas em meio a divergências com o braço da Siemens — a antiga proprietária das usinas —, não cumpriu o que havia acordado com as autoridades.
Por causa das seguidas falhas em cumprir o acordo, a área técnica da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) recomendou que a BBF perca as concessões, uma decisão que precisa ser sacramentada pelo colegiado da agência.
Agora, com a crise financeira que atinge a companhia, perder essas concessões pode até ser uma boa medida econômica, livrando a companhia dos investimentos que seriam necessários para converter as usinas termelétricas.
Para quem emprestou dinheiro à BBF, a rescisão do acordo também não é o pior dos mundos. Como ainda era um acordo relativamente recente, poucos credores consideram esses ativos nas projeções de fluxo de caixa da companhia.
O futuro da BBF
Interlocutores e fontes de mercado que acompanham a crise de crédito da BBF acreditam que a companhia de Milton Steagall pode se reerguer, mas precisará resolver as pendências com o Conselho Nacional de Direitos Humanos, o que perece fundamental para voltar a acessar o sistema financeiro.
“A companhia continua operando, e despachando energia. A situação é delicada? É. Caiu uma bigorna em cima da perna da companhia. Vai precisar de ajustes, mas ela vai poder voltar a crescer à medida em que se reequilibre”, disse uma fonte.
Nas últimas semanas, o mercado de óleo de palma também parece conspirar a favor, dando um fôlego para a BBF. Estima-se que, a cada US$ 100 de aumento no preço da tonelada do óleo de palma, a companhia agregue R$ 60 milhões no Ebitda. Do início do ano para cá, os preços da tonelada saíram de US$ 935 para US$ 1.115.
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Na Justiça, a BBF é assessorada pelo TWK, um dos escritórios mais respeitados do País em recuperação judicial. A Alvarez&Marsal presta a assessoria financeira.
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Leia a íntegra da nota encaminhada pela BBF:
O Grupo BBF (Brasil BioFuels) informa que ajuizou em 08 de fevereiro um pedido de tutela de urgência cautelar no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, e obteve o prazo de 60 dias para buscar uma solução consensual com seus principais credores, especialmente corporativos, com o objetivo de readequar o fluxo de caixa da empresa e manter a sua normalidade operacional.
É importante destacar que a tutela de urgência cautelar não representa procedimento de recuperação judicial envolvendo o Grupo BBF e seus credores. A Companhia segue envidando todos os esforços para concluir rapidamente o seu plano de reestruturação de dívidas e retomar o crescimento saudável de suas operações na região Norte, por meio do cultivo sustentável da palma, produção de biocombustíveis e geração de energia renovável nos sistemas isolados.
Com relação a operação das usinas termelétricas no Pará, o Grupo BBF reforça que vem prestando todos os esclarecimentos necessários às equipes da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e segue confiante no andamento dos processos citados, bem como vem realizando todos os esforços necessários para possibilitar o início da operação das usinas termelétricas nestas localidades.
Por fim, a companhia reforça que segue firme em seu propósito de geração de energia renovável para localidades isoladas da Amazônia, onde já possui 25 usinas termelétricas em operação, atendendo cerca de 140 mil moradores por meio dos sistemas isolados.