Se a trajetória do agronegócio no mercado de capitais fosse contada em um livro ou filme, poucos teriam tantas histórias para contribuir como Domício dos Santos Neto.
O sócio do Santos Neto Advogados é uma das figuras mais conhecidas do setor no mundo jurídico, quase onipresente nos emblemáticos casos de recuperação judicial que marcaram o agro nas últimas duas décadas e no desenvolvimento de instrumentos financeiros hoje corriqueiros no setor, como o CRA (Certificado de Recebíveis do Agronegócio).
A história do escritório permeia o crescimento do agro como um grande negócio. Fundado pelo pai de Domício com foco no setor sindical e patronal, o Santos Neto foi mudando o perfil a partir da entrada do filho nos negócios, em 1996, depois de um breve início de carreira em uma instituição financeira. Hoje, o setor é, de longe, o principal na carteira de clientes do Santos Neto, que tem a maior parte da receita vindo das áreas de contenciosos e mercado de capitais.
No mês passado, Domício e Fernando Bilotti, sócio do escritório, receberam The Agribiz para uma conversa sobre o desenvolvimento do mercado de capitais no agro. Contaram como foi atuar na primeira grande RJ do agro, representar estrangeiros na época do parecer da AGU de 2010 e até colher e vender soja dada em garantia. E avaliaram qual deve ser o próximo grande teste do setor:
“Uma coisa é você executar ou participar de uma RJ por um credor estrangeiro que está acostumado a executar, ou mesmo uma trading. Outra coisa é você se movimentar rapidamente numa estrutura de CRA pulverizado”, disse Domício.
Acompanhe os melhores trechos da narrativa abaixo, divididos por tópicos.
A primeira operação
Domício dos Santos Neto: Com o Plano Real e um ambiente mais amigável para as exportações, o Banco Central regulamentou o pré-pagamento de exportação. Nada mais era do que um financiamento de exportação por bancos internacionais, tradings e fundos de fora. E eu tive a oportunidade de participar, ainda no banco, da primeira operação no Brasil, em 1995, para a Santa Elisa e para a Glencore. Foi o primeiro marco. O IAA (Instituto de Açúcar e Álcool) tinha acabado de ser extinto e o governo estimulava as exportações.
Até então não existia agronegócio no Brasil, né? Tinha agrário, mas o agronegócio como conhecemos hoje, tão organizado, começou ali. Quando eu saí do banco e fui para o escritório, em 1996, muita gente lembrava que eu tinha experiência nessa operação e começou a me procurar. E assim o agro foi se desenvolvendo dentro do escritório.
A criação do CRA
Em 2004, o Ministério da Agricultura me procurou, junto com o Renato Buranello, para participar da Lei 11.076 que trata do CDA-WA, CRA, CDCA, LCA… É a lei que deu o boom no mercado de capitais no agro porque criou o CRA. Só que o CRA demorou para pegar tração porque não tinha regulamentação na CVM. Lembro que chegamos a fazer CRA utilizando a regulamentação aplicável ao CRI, porque não tinha regulamentação do CRA, não tinha nada.
A gente realmente andava no escuro ali. A primeira operação registrada de CRA na CVM foi em 2012, talvez, para você ter ideia. Era uma aventura. Chegou-se a fazer uma operação de CRA antes da regulamentação, sem registro nem nada, que deu default. Era uma cooperativa que entrou em recuperação judicial. Conseguimos executar, mas, você pode imaginar, os credores demoraram para receber.
Bancos estrangeiros
Até 2007 ou 2008, o maior fluxo de operação estruturada no agro ainda era de investimento estrangeiro. Tinha, obviamente, o Banco do Brasil, a Caixa, mesmo os bancos brasileiros despejavam muito dinheiro no agro. Mas eram operações de dia a dia, financiamento à produção… As operações um pouco mais robustas, que tinham penhor de safra, penhor de estoque, isso tudo era realmente feito com capital estrangeiro.
Trabalhávamos em todas as operações, com o pessoal de fora mesmo. Rabobank, Citibank, Natixis, Sterling Bank, Credit Agricole, todos os bancos estrangeiros. Os bancos brasileiros não viam esse mercado ainda como eles enxergam hoje.
A primeira RJ: Agrenco
Um outro marco na história do escritório foi uma operação de financiamento de exportação para um sindicato de bancos estrangeiros que tinha mais de 200 CPRs em garantia de produtores. Era uma operação de financiamento para uma trading, que entregou as CPRs que ela tinha em garantia para os bancos. De repente, o banco me pediu para executar 137 CPRs em 35 localidades diferentes ao mesmo tempo. Foi quando eu decidi ampliar o escritório e quando o Fernando (Bilotti) veio.
E foi interessante porque foi o primeiro teste realmente grande da CPR — e foi naquela época também que começou a lei de RJ (recuperação judicial).
Fernando Bilotti: Foi o primeiro caso grande de RJ do setor que tivemos. E como a gente iria encarar isso? Nesse caso, tínhamos a CPR. O devedor do banco (a trading, neste caso, a Agrenco) estava em RJ e a gente estava executando os produtores desta empresa —que também eram credores dela porque não tinham recebido o fertilizante ou algo do tipo. A gente também tinha CDA-WA, outro título que também nunca tinha sido testado na Justiça. Foi um caso pioneiro em que testamos tanto a CPR, em que a gente se deu mal, como o CDA-WA, que a gente se deu bem.
Não conseguimos executar a CPR porque vários produtores alegaram que aquela CPR não tinha força. Ainda era uma discussão muito inicial. Tinha produtor que alegava: eu dei a CPR para ele, mas ele não me deu o produto. Dei para ele um título baseado numa promessa de que ele me daria um produto, mas ele não me deu. Então, em tese, esse título não teria validade.
Quando eu comecei no escritório, esse caso da Agrenco estava numa discussão grande, eram muitos bancos. Todos os bancos que existem no mundo estavam em reunião, no Brasil e fora. As reuniões tinham muita gente e eram muito longas. Teve uns seis meses aqui no escritório que eu ficava três ou quatro vezes por semana em reunião. E não existia home office, claro. Era sentado numa sala com as pessoas discutindo soluções que vinham, não vinham e tal. E, de fato, ali testou-se como é que funcionava a CPR, testou-se bastante a Lei de Recuperação Judicial. E o engraçado é que a lei, se você pega a RJ da Agrenco, os termos de pagamento são infinitamente melhores do que os planos de hoje.
O teste das RJS
Naquela época não existiam algumas diferenciações (de credores). A lei de RJ prevê que todos os credores da mesma classe têm que ser pagos de forma igualitária. Mas aí foram abrindo um monte de exceção na regra: o credor fomentador pode ter um planejamento diferente, o credor estratégico… A gente até brinca que abriu-se uma brecha com o credor financiador e o credor parceiro (aquele que dá insumo). Essas duas categorias viraram várias subclasses e acabou virando um grande jogo de tabuleiro… você faz quantas classes tiver para tentar angariar o número de votos que você precisa.
E aquela cláusula genérica, dos 80% de deságio (do crédito devido), fica só para aqueles que não sentaram à mesa mesmo. Mas o caso da Agrenco era 25% de deságio, pagamento em quatro anos. Mas aí não pagaram nem a primeira parcela. Porque não conseguiam captar.
O pessoal não sabia o que era entrar em RJ. Se você é uma empresa que depende de capital para rodar, você entra em RJ e não tem capital mais. E você não recebe. Enfim, essa foi uma época, de 2008 até 2014, em que que o agro entrou num momento de instabilidade.
Domício: Mas foi uma época muito boa para os advogados. Não em termos de remuneração, mas de experiência mesmo. Foram dez anos em que o mercado foi se organizando, com novas leis, novos títulos, instrumentos. Até então, não tinha uma crise grande para você testar tudo que estava sendo criado. Foi uma época muito rica de aprendizado. Porque ou por execução ou por RJs, conseguimos criar um monte de teses, testamos várias estruturas. Foi uma época super rica.
Aqui no escritório, a cada dois anos, a gente fazia um estudo de toda a jurisprudência do Brasil. Pegando todas as garantias que tinha no agro, para ver qual era o entendimento do juiz, o que estava sendo discutido e tal, e a gente se atualizava nesses estudos, sabe? Era uma coisa bem interessante. E até fazer uma análise estatística do que dava certo, o que não dava, quais eram os problemas. Um material bem legal.
Usinas: um capítulo à parte
Bilotti: Trabalhamos em todas as grandes RJs do setor. A Agrenco foi a primeira delas, mas teve uma época para as usinas em que o custo de produção ficou mais caro do que o de venda por uns seis anos. Muito tempo. E era um mercado muito pulverizado. A Unica tinha uma lista das empresas que entraram em RJ que tinha centenas de nomes. Atuamos em muitas dessas. E tem umas estruturas engraçadas, contestadas…
À medida em que a RJ se popularizou, alguns institutos de garantia deixaram de ter relevância, como a hipoteca e o penhor de safra. E aí o pessoal começou a criar estruturas para fugir da recuperação judicial, e foi aí que a AF (alienação fiduciária) começou a crescer.
Até 2014, ninguém usava alienação fiduciária. Daí para frente, explodiu. Nós tínhamos muitos clientes estrangeiros e um deles entendeu que era muito arriscado ter uma AF de produto agrícola para quem não era banco local. Porque o dispositivo legal que tratava da área de produto de commodities estava dentro de uma lei que tratava do mercado do sistema financeiro nacional. Se você não era um banco nacional, tinha um risco de alguém entender que aquela garantia não era válida.
Entendemos que o risco existia e tentamos bolar uma garantia dupla: a AF da cana e o penhor da cana. Se a AF cair, eu tenho o penhor. Mas aí alguém falou: duas garantias do mesmo produto não dá. Mas dá para fazer AF da soqueira, que é a raiz da cana. Eu estava nessa reunião. O cara falou: “isso aqui é um produto diferente, está lá plantado, é da raiz que nasce a cana. Então se você pegar ali a AF da soqueira, de fato é um bem móvel, e você consegue pegar isso como garantia. E juntamente com isso você pega o penhor da cana, que você está super acostumado”.
Eu jamais pensaria em fazer um AF de soqueira e de fato ela foi feita. E essa estrutura que eles bolaram tinha uma única finalidade: tentar estar fora da recuperação judicial.
Mão na massa
Bilotti: Qualquer escritório grande hoje do Brasil tem agronegócio. Mas isso é um movimento que começou há oito ou dez anos, no máximo. Nossa história tem 30 anos. A gente tomou muita pancada que o pessoal não sabe nem o que é. O pessoal sabe o que é uma CPR, mas não sabe o esforço que é fazer um arresto de produto na lavoura.
A gente fez colheita. A gente ficou três meses colhendo numa fazenda. A gente contratou caminhão, contratou colheitadeira, contratou armazém. Como o cliente era estrangeiro, sem CNPJ, teve uma safra que o nosso escritório tinha 110 mil sacas de soja armazenadas em Sinop. Em nosso nome. A gente ia para o armazém, vendia para tradings… Isso foi em 2015.
E nas voltas que o mundo dá, este ano (2023) a gente fez um M&A que vendeu esse mesmo armazém. Era um armazém na novo na época, por isso que a gente conseguiu espaço. Tinha acabado de construir.
2010, o parecer da AGU
Domício: Em 2010 teve aquele parecer da AGU (Advocacia Geral da União) sobre a questão de imóvel rural para estrangeiro. E a gente tinha muito cliente estrangeiro que queria ter a alienação fiduciária de imóvel. No nosso entendimento, em 2011 e 2012, o parecer da AGU não afetava a possibilidade de você ter a alienação fiduciária de um imóvel. Você tem aquilo como garantia, você não quer ser dono.
E eu participei de um seminário em 2012 em que o nosso papel era só levantar questões. Quem ia falar realmente era o Alexandre de Moraes, que na época era um professor de constitucional, e o (Luís Inácio ) Adams, que foi o consultor-geral da União autor do parecer. E a pergunta que eu fiz para ele foi justamente essa: “como fica a questão da alienação financeira de imóvel rural para estrangeiro?” E ele foi super sincero: “olha, eu nunca pensei nisso”.
Enfim, a gente levantou a tese de que não se aplicava a lei, que podia fazer a AF, mas ninguém fazia.
Bilotti: A gente fazia essa AF de imóvel e em todas as RJs os devedores questionavam. Em todas, com exceção de uma, chegamos a um acordo. Porque, para o nosso cliente, o risco era perder a garantia. Para a outra parte, o risco era perder o imóvel. Então sempre tinha negociação. Mas uma delas não andou, em Goiás. E levantamos essa questão sobre a validade da AF andando em paralelo. Demorou quatro anos para sair a decisão, que é a única na verdade, de reconhecer a validade da AF de imóvel, mesmo sem a lei.
Domício: Hoje isso está previsto em lei. Em 2020, o Ministério da Agricultura novamente nos procurou para participar da Lei do Agro. As discussões estavam muito focadas em CPR e eu chamei a atenção para os credores estrangeiros, que financiam o agro e que buscam segurança jurídica. Depois de algumas reuniões, nos pediram para elaborar um capítulo da lei específica e escrevemos sobre a alienação fiduciária de imóvel rural para estrangeiro. E colocaram na lei. Hoje, a AF é plenamente válida, não tem mais dúvida.
Bancos nacionais
Por todas essas razões e crises que a gente teve, os bancos e os fundos estrangeiros pararam um pouco de operar aqui no Brasil. Reduziram bastante a presença e abriram uma lacuna enorme para que os bancos brasileiros e assets entrarem de vez no agro. E como é que eles entraram? Principalmente com operações de mercados de capitais. Nos últimos seis ou sete anos, o mercado de capitais bomba mais a cada ano que passa.
Antes, o fomento do agro vinha muito de fora e passou a vir muito aqui do mercado local. É lógico que os bancos ainda fazem as operações normais, mas a grande maioria realmente do financiamento hoje vem de operações de CRA, debêntures, Fiagros…
O retorno das RJS
Bilotti: As RJs estão voltando, mas o mercado mudou nisso também. Antes da lei de 2020, teve muito produtor que estava pedindo RJ. Mas eram produtores muito grandes, como o (José) Pupin. Empresários gigantescos que atuavam no agro e estavam endividados e tentavam a sorte.
O que temos visto hoje é uma pulverização. Houve mais RJs no setor, mas de produtores de médio porte para pequeno. Os grandes produtores hoje, com as commodities em alta, não estão quebrados. Eles não querem correr o risco de perder a terra para ninguém. Ele prefere reestruturar a dívida. Houve um aumento no número de casos, mas são produtores menores.
Novos testes
Domício: O agro é cíclico. Faz tempo que as commodities estão com preço bom, lá em cima, e o mercado de capitais bombou. Quando inverter esse ciclo, o preço vier pra baixo e tiver uma nova crise, vamos ter outra experiência.
Uma coisa é você executar ou participar de uma RJ por um credor estrangeiro que está acostumado a executar, ou mesmo a trading, que está acostumada também a executar, a negociar com o produtor aqui no Brasil. Outra coisa é você se movimentar rapidamente numa estrutura de CRA pulverizado, que você distribuiu no mercado. São vários investidores… Para você poder declarar o investimento antecipado e executar, tem que chamar uma assembleia, encontrar esse pessoal…
Eu acho que vamos ver algumas situações interessantes. No agro, agilidade é tudo. Ele parou de pagar, está numa situação ruim, quem chegar primeiro leva. A verdade é essa. Até numa própria RJ que a gente teve aqui mais recentemente, da Usina Ester, fomos o primeiro a lacrar o tanque deles ali, sabe?
Maturidade
Bilotti: Eu acho que o mercado de operação estruturada no agro é bem maduro. É tão maduro que dificilmente você vê inadimplemento pontual. O negócio é tão estruturado que, se ele não está te pagando, ele não está pagando para ninguém, está com uma dificuldade financeira pesada.
Domício: Hoje as coisas são muito mais previsíveis do que eram no passado. A gente tateava, andava no escuro literalmente. Hoje, você sabe o que vai acontecer com a CPR, com as garantias, com a RJ, como o Judiciário reage ao tipo de instrumento. Então eu acho que está mais consolidado, está mais fácil.