Miguel Gularte, o beef guy que não conseguiria dar conta das complexidades de um negócio de frango como a BRF, está provando que os detratores estavam redondamente enganados.
No balanço que acaba de divulgar, a dona da Sadia entregou um dos melhores resultados dos últimos anos, coroando a estratégia do metódico gaúcho de Bagé que assumiu como CEO da BRF há um ano e meio, sob as bênçãos de Marcos Molina.
Com um plano que vem atacando as históricas ineficiências operacionais da BRF e uma estratégia bem-sucedida na compra de grãos — antecipando a queda dos preços do milho —, Gularte fez a BRF gerar mais de R$ 613 milhões em caixa livre no quarto trimestre, trazendo os indicadores de endividamento para os menores níveis em sete anos.
A alavancagem (relação entre dívida líquida e Ebitda) ficou em apenas 2,01 vezes, ajudada pela geração de caixa e, claro, pelo equilíbrio proporcionado pelos R$ 5,4 bilhões injetados no follow-on de julho. Em setembro, a alavancagem estava em 2,66 vezes.
“É uma empresa completamente diferente. Uma empresa que não carrega estoque sem vendas”, frisou Gularte em uma entrevista a jornalistas, citando aquele que é um dos lemas de sua gestão — a redução dos estoques de produtos acabados, o que também traz economias nas despesas com armazenagem e melhora o capital de giro.
Em dezembro, o giro do estoque da BRF caiu para apenas 75 dias, um dos menores patamares da história da companhia, ressaltou o vice-presidente de finanças e relações com investidores, Fábio Mariano. Um ano antes, esse número passava de três meses.
A dívida bruta ideal
Com os melhores resultados e uma posição de caixa que passou de R$ 10 bilhões, a BRF conseguiu fechar dezembro com uma dívida líquida de R$ 9,4 bilhões, o menor patamar desde 2016 (curiosamente, o último ano ainda razoável da era Tarpon), levantando dúvidas sobre como a companhia vai gerir a fase boa.
Em um recente relatório, os analistas Thiago Duarte e Henrique Brustolin, do BTG Pactual, escreveram que a BRF terá o desafio de aproveitar o ciclo favorável deste ano para reduzir estruturalmente a alavancagem.
A ideia é que, ao contrário de outros ciclos favoráveis, a companhia use a geração de caixa para reduzir o endividamento, e não para investir mais. Assim, estará apta a continuar entregando bons resultados aos acionistas quando o ciclo for pior.
Em entrevista ao The AgriBiz, o vice-presidente de finanças da BRF afirmou que a companhia vê espaço para reduzir a dívida bruta. Quando considera as estimativas de caixa em risco, atualizadas trimestralmente, a dona da Sadia poderia ter uma posição de caixa menor, entre R$ 6 bilhões e R$ 7 bilhões.
Trocando em miúdos: há espaço para reduzir a dívida bruta em mais de R$ 3 bilhões, considerando os atuais níveis de risco embutidos no modelo estatístico da BRF. Segundo Mariano, a redução da dívida bruta vai ocorrer gradualmente, como foi no ano passado com o resgate dos bonds que venceriam em 2024.
A decisão por pré-pagar uma dívida, no entanto, deve obedecer a um cálculo econômico, comparando o rendimento do caixa versus o custo para pré-pagar. Estruturalmente, assegurou, a direção é reduzir a dívida bruta.
“Isso a gente vai fazer, obviamente endereçando as dívidas menos competitivas, que colocam maior encargo financeiro. A gente não precisa de R$ 10 bilhões para gerenciar a companhia sob a ótica de caixa de segurança. Isso deve acontecer ao longo dos próximos meses”, disse Mariano.
Do lado dos investimentos, a sinalização é de que a companhia seguirá comedida, evitando usar os recursos do ciclo favorável em projetos dispendiosos. Segundo Mariano, ainda há muito espaço ocioso nas fábricas para ocupar, um legado do ciclo de investimentos feito na pandemia.
Em dezembro, a dívida bruta somava R$ 19,6 bilhões.
Acima do consenso
No quarto trimestre, um período sazonalmente mais aquecido graças às vendas de produtos natalinos, a BRF conseguiu bater as estimativas do mercado, superando o Ebitda e o lucro líquido projetados pelos analistas que cobrem as ações da companhia.
A dona da Sadia reportou um Ebitda de R$ 1,9 bilhão, com uma margem de 13,2%. Trata-se de um salto de 76,3% na comparação com o quarto trimestre de 2022. O consenso Bloomberg, que compila as estimativas dos analistas, projetava um Ebitda de R$ 1,7 bilhão.
A empresa também bateu a projeção para o lucro líquido, que ficou em R$ 754 milhões, bem acima dos R$ 292 milhões do consenso. De todas as projeções, somente a receita líquida ficou abaixo do esperado, mas ainda assim por uma margem pequena.
De setembro a dezembro do ano passado, a receita atingiu R$ 14,4 bilhões, enquanto os analistas projetavam R$ 14,7 bilhões. Em relação ao mesmo intervalo de 2022, a receita caiu 2,3%.
Mercado internacional
A melhora dos resultados da BRF acompanha um bom desempenho no Brasil, onde a companhia ganhou participação de mercado, e especialmente no mercado internacional.
Depois de sofrer com os estoques internacionais de frango nas alturas, o que afetou os players de diversos países, o mercado se equilibrou. Com a recuperação dos preços no mercado externo, a margem da BRF no exterior também melhorou.
No quarto trimestre, a margem Ebitda no exterior ficou em 11%, voltando aos dois dígitos. Para 2024, tendência é de melhora, com os preços ainda em recuperação — ainda que em velocidade menos pronunciada.
Ciclo do frango
No mercado, onde o ciclo do frango e a dinâmica dos preços dos grãos são relevantes para as margens, a BRF desenha um cenário otimista para 2024, com a oferta de milho favorável na América do Sul graças à recomposição da safra argentina.
Na leitura de Mariano, o bom momento da indústria de carne de frango ainda não é o suficiente para estimular um aumento desenfreado da oferta, o que costuma ocorrer nesse mercado. Com isso, as margens devem seguir positivas.
Além disso, a melhora da demanda internacional vem pesando mais no equilíbrio do mercado do que a oferta de aves, que até caiu mas ainda continua alta no Brasil, avaliou Gularte.
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Em bolsa, a BRF está avaliada em R$ 23,5 bilhões. No ano, as ações sobem 5,7%.