Como já exposto neste espaço, estamos em plena fase de liquidação de fêmeas, considerando o ciclo pecuário. Preços em queda e produção recorde fazem parte deste contexto no momento, mas levam ao desanimo e à necessidade de liquidação para fazer caixa por parte do produtor.
Isso significa que, em se mantendo essa situação, haverá de faltar oferta para abastecer tanto o mercado interno quanto o externo. Considerando ainda que o Brasil representa algo em torno de 17% da oferta mundial de carne bovina e 20% das exportações globais, já dá pra imaginar a influência positiva que a (falta da) produção de carne bovina terá sobre os preços mundo afora.
Para quem acompanha esta coluna, esse alerta não é novidade. O que trazemos agora é um panorama da concorrência: Estados Unidos, Austrália e Argentina. Juntos, esses mercados são responsáveis por 48% da produção e 55% da exportação globais.
Boom de preços nos EUA
Enquanto o Brasil vive a derrocada de preços pecuários, nos EUA o ambiente é totalmente diferente. A virada do ciclo pecuário para a alta está acontecendo e apontando para uma forte retenção de fêmeas a frente após a famosa liquidação ter acontecido por lá também.
Desde 2022 se observava a possibilidade real de queda para a produção de carne bovina nos EUA em 2023. E já estamos vendo a consolidação desse cenário, no entanto, de maneira ainda tímida.
A primeira projeção feita pelo USDA indicava uma queda de 900 mil toneladas na produção norte-americana. No entanto, a previsão já foi reajustada estimando agora uma queda de “apenas” 500 mil toneladas. E por que foi reajustada? Por que os pecuaristas norte-americanos ainda estão abatendo muitas fêmeas.
As explicações para esse abate ainda acelerado de fêmeas em 2023 (representando 51,7% do total abatido no primeiro semestre do ano, – 0,64 ponto percentual a mais do que em 2022) se dão através de diversas variáveis, como condições climáticas que mantiveram as pastagens em más condições, preços do bezerro ainda entregando um ágio dentro da média e longe das máximas históricas, além de uma demanda por carne bovina fortalecida (estimulando os preços do animal gordo).
Sendo assim, a retenção de fêmeas que era esperada em 2023 não foi atingida na intensidade que era prevista. Mas isso somente posterga o problema para os próximos anos.
O que temos observado nos últimos meses é uma forte valorização dos preços pecuários. O boi gordo já rompeu sua máxima nominal histórica nos EUA, atingindo US$ 97,38 por arroba em julho de 2023 e valorizando 24% em 12 meses. O bezerro seguiu caminho parecido atingindo US$ 5,73/kg no mês de junho de 23 e já embarcando em uma alta de 41% nos últimos 12 meses. Ou seja, nos EUA o processo de valorização na pecuária tem acontecido de maneira intensa nos últimos meses e é o gatilho necessário para que o abate de fêmeas comece a recuar nos próximos anos.
A projeção de oferta de carne bovina nos EUA para 2024 deve ser ainda menor do que a que visualizamos atualmente. Pois o abate de fêmeas deve recuar de maneira mais intensa, estimulada principalmente pelos preços do bezerro que finalmente começaram a embalar e justificar a retenção de matrizes pensando na “colheita” de bezerros nos anos seguintes.
A problemática de oferta nos EUA não deve ser reduzida ao que acontecerá em 2024, pois o que temos observado é uma redução crônica do estoque de animais norte-americanos.
Para se ter uma ideia, os EUA devem terminar o ano de 2023 com um rebanho de apenas 87 milhões de cabeças. Esse será o menor rebanho de bovinos da história dos norte-americanos. E como os números de abate de fêmeas vieram intensos nesse primeiro semestre do ano, essa previsão pode sofrer ainda mais alterações para baixo.
O problema de oferta dos EUA não estará concentrado apenas em 2024 pois a oferta de bezerros (que será a oferta futura de boi gordo) também passa por fortes reduções. A produção anual de bezerros dos EUA em 2023 deve ser a terceira menor da história, com cerca de 33,8 milhões de bezerros produzidos e com capacidade de que seja ainda menor em 2024, pois as fêmeas ainda estão sendo abatidas.
Ou seja, os EUA estão inserindo dentro de um contexto de início do processo de retenção de fêmeas, o “pior” no quadro de oferta norte-americano ainda nem chegou levando em consideração o comportamento histórico e os números atuais de estoque.
Sendo assim, é de esperar uma participação menor dos EUA no mercado global de carne bovina. Estando entre os cinco maiores exportadores da proteína no mundo, é de se esperar um problema para ser resolvido no comércio global durante os próximos anos, com impacto direto sobre a precificação da carne bovina e abrindo espaço para que o Brasil atinja mais mercados e de maneira mais intensa.
Seca acelera abate na Argentina
O quinto maior exportador global de carne bovina não poderia ficar de fora dessa análise de países que estamos fazendo pois tem passado por problemas além da virada de ciclo pecuário.
A Argentina estava em um processo de retenção de fêmeas desde meados de 2021, após passar por uma participação intensa das fêmeas no abate de 2018 a 2020. No entanto, no meio desse processo, entre os anos de 2021 e 2023, uma seca intensa afetou as condições de pastagem do rebanho argentino e uma liquidação de animais acabou ocorrendo durante os quatro primeiros meses de 2023.
Nesse momento atual estamos visualizando uma desvalorização dos preços pecuários na Argentina acompanhado de uma aceleração no abate de fêmeas, ou seja, um “combo” parecido com o que acontece no Brasil e na Austrália, que foi antecipado pelas péssimas condições de pastagem que o país enfrentou nos últimos anos por conta da seca extrema (fruto do fenômeno La Niña). Sendo assim, a pressão negativa paira sobre o mercado pecuário argentino e a problemática política (restrições de exportações e câmbio depreciado) fazem com que a Argentina entre em uma fase do ciclo pecuário semelhante ao Brasil.
A percepção final é que a Argentina iria rumar para esse abate de fêmeas e consequentemente piora de preços naturalmente, mas as condições climáticas anteciparam esse movimento e exaltam aquela movimentação que citamos (abaixo) no balanço sobre a Austrália, mostrando como quatro dos cinco maiores exportadores globais podem afetar a dinâmica do mercado de global de carne bovina por poderem entrar em momentos do ciclo pecuário semelhantes em 2025, com restrição de oferta.
Austrália recuperou seu rebanho
Em um ciclo parecido com o brasileiro, a Austrália enfrenta um aumento de rebanho e na oferta de animais e consequentemente uma forte redução nos preços pecuários.
Durante os anos de 2019 e 2021, a Austrália passou por uma das piores secas da história fazendo com que além de um ciclo de retenção de fêmeas a engorda fosse prejudicada a ponto de fazer os preços do bezerro quase triplicarem no intervalo de três anos. No entanto, desde meados de 2021 o processo de recuperação do rebanho australiano vem acontecendo e resulta agora no maior rebanho de bovinos do país dos últimos 10 anos, com um rebanho estimado de 28,70 milhões de cabeças para 2023.
Como reflexo desse aumento do rebanho, principalmente de matrizes, podemos ver a forte desvalorização que o gado jovem (bezerro) tem registrado na Austrália nos últimos meses. O preço do animal atingiu 5,56 dólares australianos por quilo na parcial de agosto de 23, o menor preço desde janeiro de 2020 e essa desvalorização está atrelada diretamente a recuperação do rebanho de matrizes e consequente maior oferta de animais jovens.
Segundo as projeções do Meat and Livestock Australia (MLA), os números de abate ainda tem muito a evoluir segundo nos próximos anos. A estimativa do instituto é que o abate de bovinos na Austrália atinja 8,35 milhões de cabeças em 2025, retomando o patamar que foi atingindo em 2019.
Ou seja, segundo o instituto a situação de oferta de proteína bovina na Austrália ainda é de expansão, mesmo que os preços pecuários já estejam recuando fortemente nos últimos meses. E levando em consideração os números da participação das fêmeas no abate total do 1º trimestre de 2023 nota-se que ainda não temos um descarte de fêmeas ocorrendo no país, houve um leve crescimento sim, mas ainda longe de se caracterizar como uma fase de descarte “clara”.
Portanto, ainda há espaço para que mais fêmeas participem do abate de bovinos e consequentemente aumentem a produção de carne bovina da Austrália, mas aparentemente isso ainda não acontecerá em 2024. Diferentemente dos EUA, devemos visualizar uma Austrália aumentando sua participação no mercado global de proteína bovina e isso é impactante pois se trata do terceiro maior exportador global de carne bovina.
Um ponto que chama a atenção é que o processo de desvalorização do boi gordo na Austrália acontece de maneira muito intensa, com quedas que ultrapassam os 40% nos últimos 12 meses. É difícil mensurar se isso causará um abate mais acelerado de fêmeas, mas isso poderá acontecer.
E se esse cenário de aceleração do abate de fêmeas acontecer mais rápido que o previsto, a pecuária australiana poderá sofrer com uma menor produção do que o previsto em 2025.
Afinal, teríamos Brasil, Austrália, EUA e Argentina chegando em 2025 com rebanhos menores do que o observado atualmente, e isso resultaria na conjunção dos maiores exportadores globais de carne bovina com oferta em processo de redução. É um sinal de alerta ligado.
Todo esse contexto coloca uma grande pressão de redução sobre a oferta de carne bovina no biênio 2025/26, sugerindo que, juntos, Brasil, EUA, Argentina e, em parte, Austrália deverão estar alinhados e compartilhar temporalmente, pela primeira vez na história, suas fases de alta de ciclo.