Opinião

O protecionismo no leite e as distorções no câmbio

Medidas emergenciais do governo ao produtor de leite podem ajudar, mas problema do setor tem origem em distorções no câmbio

O Ministério da Agricultura anunciou medidas emergenciais a produtores de leite, que sofrem com a concorrência externa. De janeiro a julho, as importações de lácteos mais que dobraram, segundo dados oficiais. Para ajudar o setor, o governo vai comprar leite em pó a preços de varejo e planeja taxar as importações de fora do Mercosul. O bloco, no entanto, respondeu por cerca de 95% das importações neste ano.

Acompanho política agrícola desde a década de 1980. Não somente a nossa, com seus acertos e erros, mas também a CAP (Commom Agriculture Policy), da Europa, e a Farm Bill nos Estados Unidos. Comento abaixo minhas impressões sobre o momento atual e questões que já vi acontecer antes:

  1. O governo anunciou R$ 100 milhões para estocar leite em pó. A medida vai resolver a crise no setor?

Pode ajudar, mas certamente não resolve. Um problema que vem de fora não se resolve aqui dentro. Vamos ser sinceros: o governo do Brasil estará, na realidade, estocando leite da Argentina.

  • A questão então é o Mercosul?

A questão é termos construído um mercado muito imperfeito. Mercado comum exige harmonização das políticas macroeconômicas. E aqui não se trata apenas de harmonizar. Precisamos antes ter políticas macroeconômicas consistentes nos quatro países membros.

O peso argentino é resultado hoje de enorme desajuste cambial distorcendo a competitividade entre países. Com câmbios ajustados, juros reais equiparados e sistemas tributários coerentes, a concorrência seria de pecuarista com pecuarista. E certamente as importações de leite da Argentina seriam muito menores.

Produção de leite
Produtor despeja leite cru em recipiente após ordenha; setor sofre com aumento de importações | Crédito: Shutterstock
  • Como foi construído o mercado comum europeu?

Durante décadas, na antes Comunidade Econômica Europeia, hoje União Europeia, existiu um câmbio agrícola que era diferente do câmbio dos mercados financeiros. Esse câmbio agrícola amortecia as flutuações de moeda. O comércio agrícola intrabloco era realizado nesse câmbio. Na verdade, existia uma barreira que flutuava com o câmbio. Muito tempo depois acabaram com isso e hoje tem até mesmo uma moeda comum, o euro.

Questões de competitividade não podem ser distorcidas. Impossível o pecuarista e sua vaca resistirem a distorções de moeda, juros, tributos.

  •  A criação de uma moeda comum funcionaria no Mercosul?

Estamos a léguas de distância disso, diria impossível. Vejo possível negociarem um mecanismo de salvaguardas comerciais limitando o volume de leite importado. A Argentina que fosse resolver seu excesso de leite no mercado internacional, que é muito maior.

  • A questão então foi excesso de importações?

O poder aquisitivo do brasileiro também está pressionado. Esse ajuste de oferta e demanda interna teria que ser enfrentado entre nós, mas quando se acrescenta leite do Mercosul dificulta muito. O pecuarista de corte hoje também reclama do preço do boi, mas os argumentos para solicitarem estoques são impossíveis.

  •  Como esse tipo de problema é tratado em outras integrações comerciais?

No Nafta, acordo de comércio entre EUA, Canadá e México, o leite permanece como exceção. O Canadá tem uma rígida política de quotas de produção e inexiste importações de leite. Quota de leite no Canadá chega a valer mais que a vaca. É muito comum política de lácteos com restrições comerciais.

Não diria que isso devesse ocorrer no Brasil, porém poucos países permitem o enorme fluxo de leite em pó que posteriormente é reidratado e vendido em bacias leiteiras muito distantes da produção, até mesmo se passando por leite UHT. O pecuarista é um sobrevivente.