A regulamentação definitiva dos Fiagros pela CVM não foi capaz de sanar uma dúvida — nada trivial — que ainda atormenta gestores: afinal, a distribuição dos dividendos deve seguir o regime de caixa ou competência?
Num momento de maior inadimplência da indústria, a resposta faz toda a diferença para o preço das cotas dos fundos de agro. Não à toa, até a Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais) pediu esclarecimento ao regulador, mas ainda não teve uma resposta clara.
Em entrevista ao The AgriBiz, o superintendente de securitização e agronegócio da CVM, Bruno Gomes, argumentou que as regras para distribuição já seriam claras, apesar das dúvidas que ainda pairam sobre gestores e as companhias responsáveis por atuar como administradoras dos fundos.
“Nada impede um gestor ou um administrador de Fiagros de usar o caixa para fins de distribuição, desde que ele respeite a apuração de lucros por competência. Fundos com perdas e que se viram numa situação de distribuírem mais recursos do que apuraram de lucro têm de reconhecer amortização de capital em 2024”, acrescentou Gomes.
Na prática, os fundos deveriam seguir o regime de competência — que considera o resultado contábil do ano. Dessa forma, a distribuição de dividendos considerando o caixa disponível seria permitida apenas se o montante não ultrapassasse o lucro contábil. Caso contrário, o dividendo (isentos de impostos) seria considerado como uma amortização, que é tributada em até 22,5%.
A origem da confusão entre os gestores dos fundos é um processo quase natural de uma indústria que ainda é muito recente. A lei que instituiu os Fiagros veio há apenas três anos, usando temporariamente a regulamentação dos fundos imobiliários como base.
Na letra da lei, os Fiagros não possuem a obrigação de distribuição de 95% do lucro caixa, apurado semestralmente. No entanto, a confusão entre gestores foi originada na resolução nº 39, de julho de 2021, que definiu que os Fiagros tinham de se amparar de forma subsidiária nas normas dos FIIs, FIDCs ou FIPs enquanto uma norma específica para os fundos de agro ainda não existia.
“O que gerou confusão foi o fato de que, em princípio, era permitido usar o chassi do FII para fazer Fiagros e, com isso, se tornou um ponto pacificado de que a distribuição de dividendos deveria seguir o mesmo rito. Essa discussão ganhou força neste ano, quando a norma específica dos Fiagros finalmente veio”, explica o ex-diretor da CVM Otávio Yazbek, um dos principais advogados de mercado de capitais do País.
Outras bancas seguem o mesmo entendimento. “Muita gente entendeu que poderiam ser utilizadas todas as disposições de um FII. Além disso, quando o Fiagro nasce, espelha muito as estruturas de um fundo imobiliário de papel”, argumenta Luis Bellini, sócio de Agronegócio do Madrona Fialho.
A confusão tem contornos práticos. Entre os mais de 40 Fiagros disponíveis no mercado, a metodologia de distribuição segue uma variedade de regras: há veículos que fazem a distribuição de dividendos com base no regime de caixa, há quem faça no regime de competência e há até mesmo quem tenha um veículo em cada metodologia.
A principal responsabilidade para definir essa metodologia, não custa lembrar, vem principalmente dos administradores fiduciários dos fundos de investimento. Hoje, entre as maiores casas responsáveis por esse tipo de atividade estão Intrag, XP, Genial, Daycoval e BTG.
Na Genial, que tem R$ 120 bilhões em administração (e cerca de 80% disso em fundos estruturados), o entendimento é que a distribuição dos proventos tem de ser feita com base no regime de competência, explica Rodrigo Godoy, sócio responsável pela divisão de Serviços Qualificados.
“O assunto está quente. Tive essa mesma discussão com um gestor há alguns meses, vinda justamente da comparação entre o que diferentes casas estavam fazendo. Vejo essa discussão ganhando força neste ano principalmente por causa do momento do setor, com inadimplências dos CRAs dentro dos fundos”, afirma.
O impacto nos dividendos
Um exemplo recente do impacto do momento mais duro para o setor ficou claro na distribuição de dividendos do RURA11, o Fiagro da Itaú Asset. Como efeito colateral das provisões que o fundo fez para dar conta do potencial de perdas de um de seus CRAs, os dividendos foram cortados para respeitar a lógica do lucro contábil — as cotas despencaram 10% na ocasião.
Diante dessa variedade de metodologias e o questionamento por uma eventual padronização, Gomes, da CVM, sustenta que cada fundo precisa deixar claras suas metodologias nos relatórios trimestrais e anuais. “Temos a consulta da Anbima conosco e vamos trabalhar em respostas. Mas já tenho falado em eventos e orientado a respeito disso. Não tem base nenhuma usar o parágrafo único do artigo 10 para os Fiagros”, resumiu.
“O legislador não impõe a obrigatoriedade de distribuição de 95% do caixa do fundo. A posição da CVM é de que somente a lei poderia determinar um regime de distribuição e, na lei 8.668, não há especificações a respeito dos Fiagros nesse sentido. Assim sendo, a regra dos FII não é imposta aos Fiagro”, concorda Fábio Giorgi, sócio do sócio do Giorgi Martins Advogados.
Com base nessa não-inclusão, fundos não precisariam sequer distribuir lucros semestralmente — ainda que boa parte da indústria o faça, seguindo os moldes do FII. O assunto foi abordado recentemente em um artigo publicado pela revista Capital Aberto, em que Felipe Ribeiro, sócio diretor de investimentos alternativos do Clube FII, coloca o argumento em termos bastante simples.
“O Fiagro tem mais liberdade que seu irmão mais velho na distribuição de dividendos, possibilitando um produto que até se adapte melhor ao mercado de agro, com suas questões sazonais, ou mesmo possibilidades de produtos inteiramente novos, como o acúmulo de dividendos por determinados períodos até algum elemento chave para sua distribuição integral”, exemplifica.
O que não pode é extrapolar o lucro contábil. No fim do dia, o regime de competência é soberano…
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As discussões em torno de como os Fiagros devem distribuir os dividendos evocam o fantasma do MaxiRenda, um fundo imobiliário do BTG, um dos maiores do mercado.
Em 2022, a área técnica da CVM foi questionar o MaxiRenda a respeito da distribuição de dividendos, realizada sob o regime de lucro caixa. Por ser feita em patamares superiores aos do lucro apurado por competência, a CVM argumentou que o dinheiro devolvido teria de ser classificado como amortização aos cotistas.
Na novela desse tema, que tirou o sono de todo o mercado, o assunto foi parar em discussão no colegiado da CVM. Por lá, a maioria seguiu o entendimento de Fernando Galdi, de que, se o lucro caixa fosse maior do que o contábil, o excedente seria considerado devolução de capital.
A decisão colocou o mercado em polvorosa — a maior parte do mercado seguia, até então, o mesmo entendimento mostrado pelo Maxi Renda. Diante de tal repercussão, em pouco tempo, o colegiado renovado da CVM reformou a decisão, mantendo o entendimento anterior, adotado por boa parte da indústria de FIIs.