As recuperações judiciais de produtores rurais em Mato Grosso voltaram a assombrar o mercado de crédito, mostrando os riscos para a indústria de Fiagro e a fragilidade financeira que alguns agricultores — especialmente os mais alavancados — vêm enfrentando após a forte queda dos preços dos grãos.
Na Faria Lima, já se sabe que pelo menos uma gestora será atingida pelos efeitos do que parece ser o início de uma série de pedidos de recuperação judicial no campo. Há pelo menos R$ 2 bilhões em dívidas de agricultores que já pediram ou se preparam para entrar com pedido de proteção judicial até dezembro, apurou The Agribiz.
Gestora do primeiro Fiagro do mercado brasileiro, a Galápagos anunciou ontem à noite que está em busca de mais informações sobre o pedido de recuperação judicial do Grupo Três Irmãos, que produz grãos em Tapurah (MT).
O GCRA11, Fiagro da asset fundada por Carlos Fonseca, possui quase R$ 20 milhões em CRAs do Grupo Três Irmãos, o que representa 10,1% do patrimônio do fundo. O grupo está inadimplente desde outubro.
Liderado por Valter Bergamasco, o grupo familiar entrou com o pedido de recuperação judicial na semana passada. O processo estava tramitando em sigilo, mas se tornou público na imprensa de Mato Grosso ontem.
“Estamos aguardando o deferimento, mas os irmãos querem uma equação que permita pagar todos os credores, e não só um ou outro”, disse ao The Agribiz Euclides Ribeiro Junior, dono da ERS Advocacia, banca que representa os Bergamasco. Na visão dele, todos os credores terão que ceder.
O risco da alienação fiduciária
No relatório gerencial que enviou ontem à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a Galápagos argumentou que o CRA conta com a fazenda do Grupo Três Irmãos em garantia na forma de alienação fiduciária, o que poderia facilitar a venda forçada do imóvel para honrar os compromissos.
Pela legislação, a alienação fiduciária é um crédito extraconcursal, não se submetendo às regras do processo de recuperação judicial, o que protege os credores que têm esse tipo de garantia. Na prática, no entanto, uma discussão judicial sobre a essencialidade da fazenda para a atividade do produtor rural pode, no mínimo, atrasar o desfecho, quando não impedir a execução da garantia.
Ao The Agribiz, o gestor da Galápagos, Felipe Solzki, reconheceu que há decisões judiciais, especialmente na primeira instância, que concordam com o argumento da essencialidade. “Isso pode atrasar o processo e essa questão pode surgir, mas não muda a força da alienação fiduciária”, disse o gestor.
Nas instâncias superiores, a jurisprudência tem sido positiva para os credores com esse tipo de garantia, frisou o gestor, acrescentando que a recente aprovação do Marco das Garantias reforçou a alienação fiduciária.
A estratégia de discutir a essencialidade do bem deve ser seguida pelos advogados do Grupo Três Irmãos, sinalizou Ribeiro Junior. “Quem está fazendo esses CRAs está chamando investidores para um investimento que está fadado a não dar certo”, disparou o advogado.
Conhecido pela posição vocal em defesa dos produtores rurais, Ribeiro Junior foi um dos principais responsáveis pela mudança na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que confirmou que o produtor rural pode pedir recuperação judicial, mesmo que exercendo a atividade empresarial como pessoa física.
Ribeiro Junior cuidou da recuperação judicial de boa parte dos produtores de Mato Grosso que ingressaram com pedido em 2019, quando houve uma onda. A exposição do advogado foi tamanha que ele chegou a se candidatar ao Senado em 2020, no pleito suplementar vencido pelo atual ministro da Agricultura, Carlos Fávaro.
Entre os credores, a atuação do advogado na última onda de RJs foi duramente criticada. “Qualquer um que está no mercado de crédito não gosta do Euclides. Quem quer mesmo resolver o problema do produtor rural pega os casos que estão em alienação fiduciária e faz uma negociação diferente com os credores”, disse um conhecido gestor da Faria Lima.
Teste para o Fiagro
Se for mesmo deferida, a RJ do Grupo Três Irmãos será um teste para a capacidade de recuperação de crédito na indústria. Um desfecho negativo pode machucar investidores e atrapalhar o processo de maturidade da classe de ativos. O Fiagro da Galápagos, por exemplo, possui 7,4 mil cotistas.
O caso da família de Valter Bergamasco mostra como a situação vem se deteriorando ao longo dos meses. O primeiro sinal amarelo veio em abril, quando o Grupo Três Irmãos atrasou os pagamentos dos juros dos CRA. Nos meses seguintes, o grupo voltou a pagar, mas a situação não se resolveu e os juros deixaram de ser pagos novamente em outubro.
De acordo com Ribeiro Junior, a dívida total do Grupo Três Irmãos soma R$ 124 milhões. Com vencimento em 2027, os CRAs do grupo familiar pagam uma taxa de 12,25% ao ano mais IPCA.
Para Solzki, da Galápagos, o queda dos preços dos grãos criou um problema de liquidez para alguns agricultores. Alguns deles tiveram prejuízo na última safrinha de milho. Nesse cenário, a RJ surge como uma opção para ganhar tempo. No médio prazo, no entanto, a recuperação judicial pode ser negativa, reduzindo o acesso de capital do produtor que usa esse mecanismo, alertou o gestor.
Na Fiagro da Galápagos, Bergamasco não é o único com problemas. Em seu último relatório gerencial, a gestora informou que a família Castilhos, que produz soja em Luís Eduardo Magalhães (BA), prorrogou o prazo para o pagamento da amortização de um CRA, que responde por 11,7% do patrimônio líquido do fundo.
“A fundamentação do devedor na solicitação de prorrogação do prazo foi a negociação avançada para venda de uma das fazendas do grupo, que está sendo conduzida com o objetivo de equilibrar sua liquidez no curto prazo e honrar com as suas obrigações financeiras, considerando o momento desafiador do setor”, explicou a Galápagos, no relatório. O CRA dos Castilhos paga uma taxa de juros de CDI mais 8,5% ao ano.
O valor do patrimônio da família Castilhos supera as dívidas em cinco vezes, mesmo quando considerado o valor do laudo da fazenda em situação de venda forçada, argumentou a Galápagos.
Assim como ocorreu com Valter Bergamasco, os problemas de liquidez da família Castilhos também vinham se desenrolando desde o segundo trimestre.
No início de novembro, o Fiagro da Galápagos também sofreu com um atraso pontual no pagamento dos juros da família Schenkel, que produz algodão em Mato Grosso. O problema se deveu ao atraso de uma carga da commodity por uma grande trading, o que já foi solucionado.
“A situação foi normalizada e a operação já se encontra adimplente novamente”, disse a Galápagos.
Mais RJs pela frente
Ao que tudo indica, o número de recuperações judiciais de produtores rurais vai aumentar. O escritório de Ribeiro Junior já entrou com quatro pedidos de RJ de agricultores de Mato Grosso e há outros cinco em preparação, disse uma fonte à reportagem.
Além do Grupo Três Irmãos, a ERS Advocacia representa a família de Osmar Bergamasco, irmão de Valter, que também pediu proteção judicial para renegociar as dívidas. Na RJ de Osmar, as dívidas somam R$ 236 milhões.
Ribeiro Junior também presta assessoria jurídica para o Grupo Caage, que pediu recuperação judicial em outubro. O grupo pertente às famílias Beraldo e Carolo, que controlam uma cerealista e produzem grãos em Mato Grosso. As dívidas do grupo passam de R$ 451 milhões.
Até agora, o maior processo é o da família Gouveia, de Rondonópolis, que também é assessorada pela ERS. O pedido de recuperação dos produtores, que devem mais de R$ 600 milhões, foi protocolado na semana passada.
Na visão do advogado, o aumento dos pedidos de recuperação judicial é um retrato da combinação entre a queda dos preços das commodities agrícolas e dos juros altos embutidos nos empréstimos aos agricultores do Mato Grosso.
Para resolver a questão, Ribeiro Junior sugere que os fundos de investimentos que se interessaram nos últimos anos pelo produtor rural façam empréstimos na modalidade DIP (sigla em inglês para Debtor-In-Possession). Nesse tipo de financiamento, os créditos são extraconcursais, mas feitos dentro de um processo de recuperação judicial. Comum nos Estados Unidos, o DIP foi inserido na legislação brasileira em 2020.