Imagine que João pegou emprestado R$ 100 de Pedro e disse que pagaria a dívida de volta em duas semanas. Caso não o fizesse, daria sua coleção de dez carrinhos como um pagamento certo, a que teria fácil acesso. Ao fim do prazo, João não tinha o dinheiro e Pedro, então, foi cobrar a coleção de carrinhos. Aí, começou o problema…
A professora decidiu que Pedro poderia tentar reaver de forma rápida apenas três carrinhos, pois João estava devendo a mais gente e os demais carrinhos precisariam entrar na fila de pagamentos. Nessa analogia infantil, João é a Agrogalaxy, Pedro são cinco bancos e os R$ 100 são, na verdade, mais de R$ 500 milhões — mais de 10% do endividamento total da rede de revendas, como mostram documentos anexados ao processo de recuperação judicial.
A professora, no caso, foi a juíza Alessandra Gontijo do Amaral, do Tribunal de Justiça de Goiás. Na decisão proferida na última terça-feira, a magistrada deferiu o pedido de recuperação judicial, mas não só.
A juíza também decidiu que apenas parte dos recebíveis dados pela Agrogalaxy em garantia para tomar empréstimos poderá ser exercida pelos bancos fora da recuperação judicial, numa decisão que mostra como muitos instrumentos de crédito estão envoltos na proverbial insegurança jurídica brasileira.
O que são os recebíveis
Para tomar empréstimos nos bancos, a Agrogalaxy deu uma porção de recebíveis de produtores rurais como garantia, na forma de cessão fiduciária. A legislação e a jurisprudência do STJ (Superior Tribunal de Justiça) consideram que esse tipo de garantia fica fora da recuperação judicial, ou seja, os bancos poderiam executar os papéis por fora do processo.
Na prática, no entanto, esse entendimento ainda não está consolidado, principalmente na primeira instância. Com vários juízes caminhando na contramão, muitos gestores de crédito passaram a nem mesmo considerar mais a cessão fiduciária como uma garantia segura.
“Sinceramente, é uma garantia bem frágil. É uma garantia para fazer numa operação de risco de crédito baixo ou nulo, não na Agrogalaxy”, disse um gestor de crédito acostumado a estruturar operações para companhias do agronegócio. “É a famosa garantia que não serve para nada”, completou uma fonte que gera alguns bilhões em crédito agrícola.
No caso da Agrogalaxy, os principais bancos credores detêm esse tipo de garantia: Banco do Brasil, Santander, Banco ABC, Daycoval e Citi. Ao fazer o pedido de recuperação, aliás, a rede de revendas pediu à Justiça para proteger os recursos que entrarão nas contas vinculadas às cessões para evitar que os credores se apropriassem dos cursos. Nas estimativas da Agrogalaxy, cerca de R$ 205 milhões devem ser depositados.
Na recuperação judicial da rede de revendas controlada pelo Aqua Capital, o entendimento da lei novamente não foi aplicado de forma integral. Para a magistrada, que cita precedentes do próprio tribunal de Goiás, apenas os créditos performados até o início da RJ estariam fora do processo, enquanto os não performados correriam dentro da recuperação.
A diferença entre um e outro pode ser exemplificada nas travas das tradings. Em resumo, os recebíveis performados seriam aqueles em que a transferência de ativos — no caso aqui, os grãos entregues pelo cliente da Agrogalaxy às tradings — já foi realizada e agora resta a obrigação de pagar. Nos não performados, o contrato para entrega dos grãos já foi feito, mas a entrega em si às tradings ainda não.
Pode isso?
Apesar de não estar prevista na lei de falências, a distinção entre perfomados e não performados encontra precedentes no Tribunal de Justiça de Goiás e não é uma exclusividade goiana. Mesmo em São Paulo, onde a Agrogalaxy tinha sede antes de transferir o domicílio oficial, há entendimentos divergentes.
Na primeira Câmara Empresarial de São Paulo, num processo envolvendo a Graneleiro Transportes Rodoviários e Banco ABC, foi considerado que todo crédito envolvendo recebíveis seria extraconcursal, como mostra a decisão de 16 de setembro deste ano.
Já na segunda Câmara Empresarial do estado, em um caso que opôs o Banco Topázio, os dois postos de combustíveis, (JN Auto Posto e WF Combustível), a Justiça decidiu que era necessário identificar quais créditos cedidos já haviam sido performados.
Nas cortes superiores, no entanto, a tese não tem prosperado. Há duas decisões no STJ na direção de que qualquer crédito, independentemente de estar performado ou não, estaria fora do processo de RJ, em processos não relacionados diretamente ao agronegócio.
“Não importa se foi performado ou não. Essa interpretação joga no lixo o que a legislação pretendeu possibilitar com a cessão fiduciária de direitos creditórios”, disse um advogado que trabalha com RJs.
No STJ, um dos processos que abordou o tema envolve Trilobit Comércio, Montagem e Fabricação de Placas Eletrônicas e o Banco Sofisa. Nele, a ministra Nancy Andrighi considerou que não importava o momento em que o crédito havia sido cedido. O outro processo envolve a Eletrosom e o China Construction Bank.
O problema é que chegar às últimas instâncias leva tempo — e dinheiro. Mas para quem precisa de oxigênio como a Agrogalaxy, ganhar tempo é precioso. “É uma boa decisão para eles no curto prazo, mas não sei se vai ser mantida”, completou outro advogado.
A passos de tartaruga
No Judiciário, os casos envolvendo garantias como cessão e alienação fiduciárias podem se arrastar por muitos anos, disse a advogada Esther Slud, sócia das áreas de resolução de disputas, reestruturação e insolvência do Cescon Barrieu. “Alguns deles já ocorrem há mais de seis anos e ainda não terminaram, em empresas que já entraram na segunda RJ”, contou.
Nem sempre as discussões envolvem os recebíveis, mas sim um outro ponto de insegurança jurídica na atividade de crédito do agronegócio: a essencialidade do bem dado em garantia.
De fato, bens essenciais para a operação de uma empresa (sendo obrigatoriamente bens de capital) fazem parte da exceção ao modo como esse tipo de garantia funciona até mesmo na lei de falências.
No agronegócio, a discussão em torno disso tem se manifestado principalmente nas garantias de terras fornecidas a diferentes credores no mercado financeiro — e cuja essencialidade tem sido apontada em diferentes processos, impedindo esses credores de conseguirem exercer a alienação fiduciária, ficando com as terras para quitar a dívida.
Nas cortes superiores, a razão dos credores também costuma prevalecer, mas o prazo de recuperação dos passivos continua sendo um terror.
Vale a pena?
Além da demora, outros pontos têm sido levantados pelo mercado em relação à cessão fiduciária de recebíveis. Melhor do que ter recebíveis em garantia é, de fato, comprá-los, afinal.
A afirmação não diz respeito apenas à Agrogalaxy. Revendas como Portal Agro (que está em recuperação judicial) e a Futura Agro, que acessaram o mercado de capitais com a emissão de CRAs, possuem cessão fiduciária como garantia.
“O grande problema de recebíveis é que eles são consumidos. No fim do dia, a partir do momento em que aquele valor é transferido para uma empresa em recuperação judicial, ela vai usar os recursos para as atividades dela e o credor não terá mais acesso. Você não consegue voltar atrás, recuperar o crédito que foi disponibilizado para a recuperanda”, diz um advogado experiente no assunto.
Quando se compara os diferentes tipos de garantia — tirando da mesa, portanto, a compra direta dos recebíveis, que foge dessa lógica —, a cessão fiduciária não chega a ser a pior.
“Mas a alternativa à cessão fiduciária é o penhor, que está obrigatoriamente sujeito à recuperação judicial. Na cessão fiduciária existe a chance de batalhar para que isso seja feito fora do processo”, acrescenta Gaspar.
Num horizonte mais amplo, há quem acredite que a celeuma jurídica é parte de uma evolução no relacionamento entre o campo e a Faria Lima. “Hoje, não se discute mais como funciona a alienação fiduciária de soqueira da cana, uma discussão que já existiu”. Pacificar o que ocorre com cessão e alienação fiduciária deveria ser o próximo passo.
Enquanto isso, o custo do crédito inevitavelmente ficará mais caro.