Desmatamento

De vilão a exemplo? A aposta do Pará na transformação da pecuária

Coalizão entre governo, indústria frigorífica e terceiro setor deflagrou um movimento de escala inédita para rastrear o rebanho individualmente 

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Desmatamento, violência e grilagem. Por muito tempo, a criação de gado no Pará parecia condenada ao noticiário negativo, tamanha a associação da atividade à destruição da Floresta Amazônica — uma crítica pertinente em boa parte das ocasiões, é bom que se diga.

De uns tempos para cá, no entanto, os paraenses deram um chacoalhão. Agora, estão à frente de um movimento em escala inédita no País, protagonizando uma transformação (ainda incipiente) capaz de viabilizar uma pecuária sustentável na prática e chegar à COP-30, em Belém, com os primeiros resultados.

A dianteira do Pará começou a ser desenhada há pouco mais de um ano, quando o governador Helder Barbalho anunciou, durante a COP realizada em Dubai, o plano de rastrear individualmente todo o rebanho do Estado até 2026, atacando um dos maiores gargalos para monitorar os fornecedores indiretos de gado.

Além do prazo curto, a estratégia chamou atenção pela dimensão. Foi o primeiro Estado com relevância na produção de carne bovina a decidir rastrear o rebanho individualmente.

Desde 2001, a área de pastagens cresceu 76%, atingindo de 22,5 milhões de hectares no estado, segundo dados do MapBiomas. Com 25 milhões de cabeças de gado, o Pará detém o segundo maior rebanho do País, só atrás de Mato Grosso.

Pecuária amazônica

Até o anúncio do governador paraense, apenas Santa Catarina rastreava o rebanho bovino individualmente — os catarinenses, no entanto, possuem um rebanho bovino diminuto e o fizeram apenas para conseguir o status de livre de aftosa sem vacinação com o objetivo de abrir o mercado japonês à carne suína.

“Santa Catarina foi um experimento bem executado, mas desde então nenhum outro estado havia feito”, afirma Liège Correia, diretora de Sustentabilidade da JBS Brasil, a maior indústria frigorífica instalada no Pará — a companhia conta com cinco abatedouros em terras paraenses.

A iniciativa do Pará também ajudou nos debates federais. No ano passado, o Ministério da Agricultura lançou um programa de rastreabilidade individual do rebanho, com um cronograma de implementação de oito anos.

Uma das organizações mais engajadas na transformação da pecuária na Amazônia, a The Nature Conservancy, mais conhecida pela sigla TNC, reconhece que a decisão política de rastrear o rebanho mudou a direção.

“O governador encomendou um plano de rastreabilidade que fosse individual, obrigatória e rápida, e não está recuando com relação ao prazo. Se a rastreabilidade fosse voluntária, ficaríamos empurrando”, comemorou José Otavio Passos, diretor para Amazônia da TNC.

O desafio da implementação

Com o prazo curto, a solução passa pela construção de uma coalizão envolvendo o estado, empresas privadas e o terceiro setor. Sem isso, seria praticamente impossível brincar todo o rebanho do Pará, notadamente entre os pequenos produtores — o elo mais frágil da cadeia.

Dados compilados por um estudo realizado pela consultoria Bain em parceria com a TNC calculam que, em 2023, pelo menos 50% do rebanho paraense estava em propriedades rurais com problemas relacionados ao desmatamento. A vasta maioria com imóveis irregulares (88%) é formada por pequenos imóveis e assentamentos.

“Pequenos produtores e aqueles em imóveis rurais com desmatamento enfrentam maiores  barreiras para adesão [à rastreabilidade], principalmente por causa do custo elevado de regularização ambiental e do receio de marginalização do mercado formal”, apontou o estudo da TNC.

Para contornar esse problema, o Pará conseguiu o apoio financeiro para fazer a brincagem do rebanho dos pequenos produtores. Juntas, TNC e JBS doaram 2 milhões de pares de brincos para a Adepará, a agência responsável pela defesa agropecuária do Pará.

As doações ocorreram depois de testes a campo realizados na região de Marabá, na região de Carajás, mostrarem a complexidade de implementação e os custos envolvidos, que vão além da aquisição dos brincos. Estima-se que a brincagem custe US$ 4 por animal.

Em paralelo às doações feitas aos pequenos produtores, a JBS também vai custear a aplicação de mais de 1 milhão de pares de brincos entre os fornecedores indiretos de gado, um trabalho que será realizado ao longo deste ano.

O que muda em 2026

“Se em janeiro eu não tiver um monte de animais já brincados, vou ter uma disrupção, uma parada logo no primeiro dia”, disse Fábio Dias, diretor de pecuária da Friboi e líder de agricultura regenerativa da JBS.

Isso ocorre porque, a partir da virada do ano, o rebanho bovino do Pará só poderá ser movimentado se estiver com os brincos. Sem eles, a agência sanitária não emitirá a GTA (Guia de Trânsito Animal) necessária para transportar o gado de uma fazenda a outra ou até o frigorífico.

Com tecnologia semelhante às tags de pedágio, os brincos não resolvem o problema ambiental por si só, lembrou Dias. Eles permitem a leitura individualmente a cada movimentação, mostrando de que fazenda partiu o animal.

Para completar o trabalho, as indústrias precisam cruzar diversas outras informações socioambientais (embargos, lista suja do trabalho escravo, áreas indígenas etc). A JBS também auxilia os produtores no processo de regularização ambiental, evitando que eles sejam jogados ilegalidade.

Sem os brincos, no entanto, é impossível controlar o gado individualmente, o que permite que o processo conhecido como “lavagem de gado” continue ocorrendo à revelia dos frigoríficos.

Distribuição regional do gado

Se o único controle for por lote, um dado já fornecido pela GTA no Pará, o máximo que alguém consegue estimar é a probabilidade de ocorrência de lavagem de gado. “Calculamos que ela pode chegar a 20%”, disse Passos, da TNC.

Com o brinco, o risco de contaminação vai cair brutalmente. “A rastreabilidade individual te dá a possibilidade de guardar as informações que hoje você não consegue guardar porque elas estão misturadas no lote”, resumiu Dias.

No tempo, a pecuária paraense também pode se valorizar, explorando os atributos de uma produção sustentável. Nos cálculos de Bain e TNC, a rastreabilidade individual pode agregar até US$ 1 bilhão à produção de gado do Pará em um intervalo de três a cinco anos.

Se tudo der certo, será possível produzir carne mantendo a floresta em pé.