A relação entre as tradings de grãos e a Rumo, principal operadora de ferrovias do País, nunca foi das melhores. Os conflitos começaram logo na partida, quando a fusão entre a empresa e a ALL foi contestada no Cade pela Abiove, a principal associação do setor, há dez anos.
Depois, vieram duras negociações de contratos, especialmente em relação à famosa cláusula de take or pay, em que os usuários se comprometem a pagar o concessionário mesmo que não utilize o volume contratado para o transporte — ainda que isso ocorra por um motivo de força maior, como uma quebra de safra.
Mas a temperatura dos conflitos tem subido ainda mais, extrapolando questões comerciais e entrando no âmbito regulatório. O desconforto é tão grande entre os embarcadores que a Abiove e a ANUT (Associação Nacional dos Usuários do Transporte de Carga) decidiram atuar junto a órgãos do governo federal solicitando maior rigor na fiscalização das concessões de ferrovias. O debate chegou até ao Congresso Nacional.
As queixas são diversas: vão desde a falta de acesso a indicadores do serviço ferroviário à recusa de carga, sob a alegação de falta de capacidade, e discrepância de tarifas praticadas para usuários diferentes em um mesmo trecho.
Os usuários das ferrovias alegam, com base no resultado de uma auditoria independente, que há indícios de irregularidades na política de preços praticados na malha norte da Rumo. O tema foi objeto de queixa formal apresentada pela Abiove à ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres).
O problema é mais evidente nas tarifas cobradas entre Rondonópolis (MT) e Santos (SP), a principal rota ferroviária do País. Para os usuários mais distantes do terminal de origem, o preço cobrado por tonelada transportada é menor em comparação com as regiões mais próximas do terminal onde se inicia o transporte para o mesmo trajeto.
Em outras palavras, a Rumo aplica um desconto na tarifa ferroviária a usuários que precisam percorrer um trajeto maior de caminhão para chegar em Rondonópolis. O objetivo é tornar o custo logístico total do transporte pela ferrovia mais competitivo, o que beneficia o embarcador que está mais distante do terminal ferroviário de origem, mas acaba afetando a competitividade de modais alternativos, como os próprios caminhões ou a rota de exportação pelo Arco Norte, que inclui hidrovias.
A situação tem incomodado as tradings, que veem uma distorção econômica nessa prática. Vale lembrar que algumas dessas empresas, como Cargill, Amaggi, Bunge e ADM, investiram pesadamente em alternativas de exportação pelo norte do País ao longo da última década em busca de um custo mais competitivo. “É uma forma de dumping”, critica uma fonte ligada ao setor de grãos.
Na reclamação enviada à ANTT, o argumento dos exportadores é que o critério de precificação baseado no ponto de origem da carga viola as regras previstas na resolução n° 5944/2021 da ANTT, que exige critérios isonômicos de contratação.
A Rumo confirmou que o cálculo das tarifas praticadas considera o custo logístico total, incluindo as pontas rodoviárias de origem da carga, e afirma que sua política tarifária cumpre todos os requisitos estabelecidos pela ANTT (teto e dispersão tarifária).
“A companhia promove a democratização do acesso e permite que todos os usuários tenham uma tarifa equilibrada e competitiva”, disse a empresa ao The AgriBiz por meio de nota.
Procurada, a ANTT informou que “analisa todas as reclamações apresentadas pelos usuários e que já atuou em dezenas de casos oriundos destes registros, no sentido de assegurar a adequada prestação do serviço”. A Abiove não comentou.
Quem é o cliente?
Outro objeto de reclamação dos usuários é a recusa, por parte dos concessionários, de disponibilizar informações necessárias para uma análise do desempenho do serviço ferroviário.
Os contratantes do frete querem ter acesso a dados como: volumes e tipos de produtos que sofreram recusa de transporte, tempo médio de trânsito (entre o ponto de embarque e o destino) e indicadores de perdas de cargas, além de tarifas médias praticadas por tipo de produto.
Segundo o presidente-executivo da ANUT, Luís Baldez, existe uma previsão legal para prestação desse tipo de informação desde 1995, quando teve início o processo de privatização de vários setores da economia. “Só um setor não atendeu ao ditame legal: o de ferrovias”, afirma.
O ambiente para a troca desse tipo de informação é uma comissão tripartite, formada por um membro da ANTT, um representante dos concessionários e outro dos usuários de ferrovias.
“Mas há uma falta de clareza sobre o papel dessa comissão, o que torna o resultado de suas reuniões pífio”, critica o presidente da ANUT. “As reuniões se tornam um cabo de guerra, em que os usuários pedem as informações e as concessionárias fornecem apenas as informações que elas acham que devem dar — e que não permitem fazer uma avaliação do serviço”.
O impasse é tão grande que chegou ao Congresso Nacional. Diante desse cenário cinzento, o senador Weverton Rocha (PDT-MA) apresentou, em outubro deste ano, o projeto de lei n° 4158, que visa disciplinar as responsabilidades da ANTT sobre as comissões tripartites de ferrovias e das concessionárias quanto à prestação de serviço adequado. O PL aguarda designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.
Para Baldez, o PL é assertivo e vai assegurar o ambiente para que a comissão tripartite funcione de fato. “A concessionária tem que entender que ela não presta um serviço para ela mesma, mas para um usuário. E ele tem o direito de saber se a carga tem avarias, perdas e qual foi o tempo de transporte”, afirma o presidente da ANUT, que representa segmentos como o de celulose, açúcar e etanol e de fertilizantes, entre outros.
Procurada pela reportagem, a Rumo não comentou esse tema específico. A VLI, a outra grande concessionária de ferrovias do País, disse que “todas as questões relacionadas ao atendimento ao cliente são tratadas com total transparência na comissão tripartite”.
Recusa de carga
Um outro ponto sensível nessa relação é a recusa, pelas concessionárias de ferrovias, de atendimento a pedidos de transporte de carga sob a alegação de falta de capacidade. Passado um determinado índice de saturação da ferrovia, o contrato de concessão obriga o concessionário a investir para ampliar a capacidade. Os exportadores de grãos reclamam que isso não tem sido feito na velocidade necessária, e solicitam maior fiscalização da ANTT.
De fato, o ritmo de crescimento das exportações de soja e de milho do Brasil tem sido muito maior do que o aumento da capacidade de transporte ferroviário. Entre 2010 e 2023, a participação do modal ferroviário nas exportações de soja caiu de 47% para 33%, segundo estudo da Esalq-Log. Apesar do avanço das hidrovias, cuja participação subiu de 8% para 12%, os caminhões ganharam ainda mais espaço, respondendo por 54% do volume de soja que chegou aos portos no ano passado ante 45% em 2010.
“O volume de exportação de grãos cresceu mais do que a capacidade de transporte das ferrovias. A demanda não foi totalmente atendida”, diz Thiago Guilherme Péra, coordenador da Esalq-Log.
Além da criação de novas ferrovias, que exigem investimentos bilionários e novas rodadas de concessões, é possível aumentar o volume transportado pelas ferrovias por meio de investimentos na malha existente, lembra Péra.
“As empresas precisam investir mais em ampliar a capacidade dos vagões, em locomotivas que suportem tracionar uma quantidade maior de vagões”, diz. “Também precisamos de mais ferrovias em grandes regiões produtoras, mas temos que considerar que o investimento em ferrovia envolve riscos altos”, pondera o especialista, lembrando que os prazos de concessão podem chegar a 30 anos.
Outro lado
A Rumo argumenta que investe constantemente em soluções logísticas para aumentar a eficiência do principal corredor ferroviário de exportação em direção ao porto de Santos.
“Na malha paulista, a empresa já executou 25% das obras previstas a partir da renovação antecipada do contrato de concessão assinado em 2020. A entrega da capacidade de toneladas movimentadas pela ferrovia subiu de 45 milhões de toneladas/ano em 2020 para atuais 53 milhões de toneladas/ano, e a previsão é de chegar a aproximadamente 75 milhões de toneladas/ano quando atingir a conclusão dos investimentos”, diz em nota.
Outro investimento relevante que está sendo realizado pela Rumo é a extensão da malha ferroviária de Mato Grosso, com a construção de mais de 700 quilômetros de trilhos até Lucas do Rio Verde. “Neste momento, as obras estão a pleno vapor, com mais de 5 mil trabalhadores dedicados à construção do primeiro trecho, 160 quilômetros de trilhos e um novo terminal”, informou a Rumo.
A VLI informou que investiu mais de R$ 3 bilhões em 2024 na aquisição e reforma de vagões e locomotivas e na modernização de trilhos — o montante equivale a mais de 30% da receita líquida da empresa neste ano.
A empresa também aguarda a aprovação da renovação da concessão da FCA (Ferrovia Centro-Atlântica), que se encerrará em 2026. O projeto prevê investimentos de R$ 29 bilhões em 30 anos para modernização e ampliação da capacidade da malha, que passa por São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Minas Gerais e Goiás.