ENTREVISTA

“A COP não é do agro, nem do Brasil. A COP é do planeta”, diz Eduardo Assad

"Não podemos pensar em focar na produção sustentável de soja na Amazônia. Isso é muito pequeno para o tamanho do problema que temos pela frente", diz o pesquisador

Um dos maiores especialistas no impacto das mudanças climáticas na agropecuária, o pesquisador Eduardo Assad, hoje na Fundação Getúlio Vargas, tem um alerta para uma parte do agronegócio que busca, na COP 30, se posicionar como uma referência em produção sustentável: “A COP não é do agro. A COP não é da Amazônia, nem do Brasil. A COP é do planeta.”

Apesar de defender que é hora da sociedade brasileira se posicionar como um país que está trabalhando para reduzir o desmatamento na Amazônia e ter uma agricultura de baixo carbono, Assad sustenta que “isso não deve ser a tônica da COP”.

“Estamos discutindo emergência climática para o planeta. Milhões de pessoas estão migrando de um país para outro por causa do calor. Existem populações no mundo que serão dizimadas por causa do aumento do nível do mar. Não podemos ficar pensando em focar na produção sustentável da soja na Amazônia. Isso é muito pequeno para o tamanho do problema que temos pela frente”, disse Assad em entrevista ao The AgriBiz.

Para ele, concentrar o debate em um determinado desafio é um risco para o sucesso da conferência. “Estamos cometendo um equívoco ao falar que ‘a COP é nossa’. A COP é no Brasil, mas é do planeta. Estamos vivendo esse momento terrível com negacionistas poderosíssimos afirmando que não está acontecendo nada. Então não podemos vincular as discussões ao cálculo da NDC no Brasil que está errado… Não é isso. O importante é trabalhar com conteúdo: para que lado vamos avançar?”

Assad avalia que o Brasil começou a avançar nessa agenda ao mostrar, nos últimos três anos, que é possível controlar o desmatamento na Amazônia e que é viável implementar a rastreabilidade bovina. Mas ressalta que é preciso ter cuidado ao levar esses temas para a conferência. “Vamos mostrar para o mundo que somos bons? Cuidado. Porque os argumentos contrários são muito maiores. Temos que estar preparados para críticas.”

Com uma vida dedicada a estudar os impactos das mudanças climáticas na agropecuária, Assad foi pesquisador da Embrapa por 35 anos e coordenador técnico do zoneamento agrícola de riscos climáticos no Ministério da Agricultura por 20 anos, tendo participado ativamente da elaboração de políticas públicas para promover a agricultura de baixa emissão de carbono (ABC). Também foi coordenador científico do IV inventário nacional de emissões/remoções de gases de efeito estufa do Ministério da Ciência e Tecnologia.

Nesta entrevista, ele fala também sobre as consequências do aquecimento global na produtividade agrícola brasileira, oportunidades e desafios na mudança do sistema de produção. Leia, a seguir, os principais trechos:

The AgriBiz: Em um artigo recente, o senhor defendeu que passemos a incorporar as mudanças climáticas nas projeções para a agricultura. Como seria isso?
Eduardo Assad: Para mim, isso é quase falar o óbvio, porque tenho dito isso há 30 anos. Vou dar o exemplo de uma política pública que faz isso e ninguém sabe: o zoneamento agrícola de risco climático. Ele trabalha com uma série de dados diários dos últimos 30 anos. Quando você avança um ano, ele elimina o último ano. Ao fazer isso, ele está incorporando paulatinamente os eventos extremos, como o aumento de temperatura e a evapotranspiração, ao zoneamento. Então, o que acontece é que o pessoal fala assim: “mas no ano passado eu podia plantar nessa data e agora não posso mais”. Exatamente porque você está incorporando essas variações climáticas.

Então já existe uma política pública que faz isso?
Sim, mas estamos sugerindo que mude o cluster, esse período de 30 anos, para 10 anos. Porque essas mudanças estão muito fortes. Estamos vendo em vários estudos que o período chuvoso no Brasil está diminuindo. Tem um estudo nosso na FGV, e a Embrapa chegou à mesma conclusão, mostrando que a estação chuvosa no período da safrinha perdeu 30 dias. E o Inpe soltou um trabalho maior, pegando o Brasil inteiro, mostrando que a estação chuvosa no Brasil teve uma redução de 100 dias para 80 dias, em média. Não trabalhar com isso é dar um tiro no pé. É preciso que as pessoas entendam que isso está acontecendo. Não é que vai acontecer, isso está acontecendo. E precisamos tomar algumas medidas que tentem evitar que isso tenha um efeito importante nas diversas culturas. Cada cultura vai reagir de forma diferente, mas temos uma ideia muito boa do que que pode acontecer com a soja, com o milho, com o café, com a laranja…

O que os agricultores podem fazer para evitar que isso aconteça? É aí que entram as práticas regenerativas?
Exatamente. Como é que funciona? Vamos trabalhar primeiro com a história da água: 95% da nossa agricultura é de sequeiro, ou seja, depende da chuva. Essa chuva cai, entra no solo, que armazena a água. Aí a planta tira essa água do solo e produz. Se não tiver água, não tem produção agrícola. Primeira lição: tem que ter água. Segunda a lição: a água tem que ficar no solo. O pessoal precisa entender isso.

Nós estamos trabalhando com o modelo de produção agrícola que vem lá dos anos 70 e que tem inputs externos. Coloca adubo, faz um plantio mecanizado altamente tecnificado e você vai aumentar sua produção. No Brasil, esse modelo provocou um boom de produtividade altíssimo até 2013 e 2014. Tivemos um aumento de produtividade de 4,2% ou 4,3% ao ano. Uma coisa extraordinária, tem que bater palma, muito bom! Mas esquecemos que essas atividades são finitas, e que a gente esgota o recurso natural. De lá para cá, essa produtividade continua crescendo, mas não nesses níveis tão altos. Caiu para 1%, 1,2% ou 1,3% ao ano. E eu espero que a gente consiga manter isso.

Como fazer isso?
Para fazer com que isso funcione, nós temos que manter o sistema solo-planta-atmosfera funcionando. Senão, não tem jeito. Não tem milagre. Então o que que a gente faz? A primeira coisa é conservar o solo e fazer com que a água que cai ali possa ser absorvida. Segundo ponto: todo sistema que puxa essa água do solo é regido pelas raízes das plantas. Então, se você aprofunda a raiz, vai ter um reservatório de água mais explorado. Quando você faz isso, a sua planta é mais resiliente à seca e a veranicos. E como é que se faz isso? Aumentando a matéria orgânica do solo. Fazendo essas práticas que hoje chama-se de práticas regenerativas, mas a agricultura ABC também faz isso quando ela foca em recuperação de solo e até recuperação de pastagem. Se você quer ter um solo saudável, você tem que botar um sistema com raízes profundas, que façam com que as enzimas trabalhem mais. Se você botar nitrogênio mineral, fósforo e potássio, você não vai fazer isso.

Por que é tão difícil mudar o manejo?
O pessoal do agronegócio mais comoditizado trabalha com lucro muito grande em muito pouco tempo. Quando você fala em prática regenerativa, está falando em três, quatro, cinco, dez anos. Mas se a gente tivesse adotado isso há mais tempo, aquele aumento de produtividade lá de 4,2% ao ano estaria mantido hoje. Você não teria as perdas que a gente tem, porque a raiz aprofunda, a matéria orgânica aprofunda, a planta funciona melhor e você tem os insumos e os nutrientes que vêm do próprio solo. Ninguém dava importância para minhoca em estudo. Hoje, tem que ter os bichinhos da biota do solo, tem que funcionar. Isso até a minha avó sabia. Então o pessoal está recuperando essas coisas, mas não pode ter pressa. Se tiver pressa não vai dar certo.

O problema é que chegamos num ponto em que o mundo tem pressa. Como o senhor colocou, as mudanças climáticas estão acontecendo muito rápido.
Muito rápido, e não estavam, não. Até 2015, esse fluxo de aumento da temperatura permitia dizer que o nosso objetivo era segurar [o aumento médio da temperatura global] em 1,5º C. Hoje não é mais, o nosso objetivo é segurar 2ºC. Olha em quanto tempo isso aconteceu… Porque nós desmatamos, porque estamos mudando o sistema hidrológico, porque nós não estamos dando conta de segurar os eventos extremos. Mas tem solução e a solução é, pouco a pouco, ir mudando essas coisas. Em vez de dizer “ah não, tudo bem, eu não vou conseguir fazer a prática regenerativa de uno ano para o outro”. Eu digo: então plante árvores. Plantar árvore, por exemplo, numa lavoura de café ou até em torno de uma lavoura de laranja, você reduz a temperatura em meio grau. E aí não aborta flor, você controla a geada… Se você plantar árvores no meio do pasto, você estimula a ambiência animal. A diferença de temperatura de um pasto a céu aberto, sob o sol, e a temperatura embaixo de uma árvore é de 10ºC. Quem não prestar atenção nisso, vai perder.

O maior desafio é dar escala a essas práticas?
Olha, tem política pública, tem dinheiro e tem tecnologia. Tudo isso já existe. A difusão da tecnologia ainda é baixa e precisa chegar mais no pequeno agricultor. Mas o mais importante não é isso. O mais importante é que as pessoas entendam que nós estamos vivendo uma emergência climática. Se for seguir o que Trump fala, o mundo derrete.

Existe uma polarização entre os produtores? Uma divisão entre os que defendem agricultura regenerativa e os demais?
Vamos dizer que eu sou vítima disso, tá? Durante esses 30 anos, onde eu fui fazer palestras as pessoas falavam que eu estava falando bobagem, que era coisa de abraçador de árvore. Até o momento em que começa a perder, e aí começa a mudar. O café, por exemplo, foi o primeiro trabalho que nós fizemos em 2004. Na Embrapa e na Unicamp fizemos esse trabalho mostrando como o café estava vulnerável, e alguns colegas de pesquisa falaram que não tinha nada de mudança climática em café. Este ano, a perda de produtividade no arábica foi de 12% — e na conta de aumento temperatura. Estamos há 20 anos falando isso insistentemente. E olha que interessante. A produtividade média de café arábica no País está estacionada em 28 sacos por hectare há muitos anos. Deveria estar muito maior. Como é que você consegue uma produtividade maior no café? Partindo para essas práticas regenerativas, mantendo a água no solo, esfriando o ambiente. Isso é conhecidíssimo, mas exige investimento e paciência.

Já é possível medir os ganhos com práticas regenerativas?
Existem estudos publicados que mostram que, quando você planta soja no sistema convencional, utiliza 42% do tempo útil da fazenda. Nos outros 58%, você está emitindo gás de efeito estufa. Se você faz safrinha de milho, utiliza 80% do tempo. Se você pega soja, milho e pasto (e põe a braquiária), você já está usando mais de 95% do tempo útil da sua fazenda, aprofundando raízes e aumentando a matéria orgânica. Só com a soja, eu produzo 3.600 kg por hectare. Quando eu acrescento só o milho, eu produzo em torno de 10 toneladas por hectare. Com soja, milho e pasto, tem 10 toneladas de grãos mais sete arrobas de carne por hectare. Então eu não preciso desmatar para dobrar a produção agrícola brasileira, porque nós estamos trabalhando com um buffer de quase 40 milhões de hectares que pasto degradados.

O Brasil é o único país no mundo que tem tecnologia para fazer isso. O nosso agronegócio vai continuar pujante, produzindo, determinando equilíbrios de balança comercial com o mundo inteiro. E estimulando os sistemas agroflorestais, a nossa agricultura familiar arrebenta. Arrebenta porque você vai ter árvore, você vai ter um produto que a gente consome na mesa com sistemas equilibrados, e vem aí um ganho adicional que é o crédito de carbono. Então, tudo isso entra na conta, não somente bota adubo, colhe soja, vende a soja. Já tem muitos trabalhando com isso e estão rindo de orelha e orelha, porque não estão perdendo dinheiro.