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Afinal, o que é agricultura regenerativa? É modinha ou um caminho sem volta?

O termo adormeceu durante algumas décadas, enquanto a busca insaciável por produtividade tomava conta, mas voltou com tudo em meio à crise climática

Fazenda de café Três Meninas, propriedade ícone na agricultura regenerativa no Cerrado Mineiro. Crédito: Consórcio Cerrado das Águas
Fazenda de café Três Meninas, uma propriedade ícone na agricultura regenerativa no Cerrado Mineiro | Crédito: Consórcio Cerrado das Águas

O termo agricultura regenerativa viralizou. Do pequeno produtor às grandes tradings e indústrias de alimentos, todo mundo diz que está fazendo, quer fazer ou tem ações que promovam o tal jeito revolucionário de produzir. Mas, afinal, o que é agricultura regenerativa?

O conceito ainda parece estar em construção, com algumas discussões ainda na pauta dos mais entendidos. Mas, de forma simplificada, pode-se traduzir agricultura regenerativa como uma forma de produzir alimentos que busca o reequilíbrio do ecossistema, por meio de ações que priorizam a fertilidade do solo, a biodiversidade e a preservação dos recursos hídricos. O objetivo final é tornar a agricultura mais resiliente às mudanças climáticas, garantindo a produtividade das colheitas e renda ao produtor.

“A agricultura regenerativa é um caminho sem volta. Ela é a alavanca da transição para sistemas agroalimentares mais justos e regenerativos, pensando principalmente no combate à insegurança alimentar”, diz Carla Gheler, coordenadora técnica da pasta de Sistemas Agroalimentares do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), que congrega 100 dos maiores grupos empresariais de diferentes setores.

Os impactos, portanto, transcendem a preocupação com o ambiente. “Alguns chamam de agricultura sustentável, outros de agricultura integrativa. Mas o importante é o resultado que este tipo de produção traz ao meio ambiente e à sociedade”, acrescenta Gheler.

Embora também existam discussões sobre a sua origem, o conceito é comumente atribuído ao americano Robert Rodale, que usou o termo na década de 1980 para designar uma conversão gradual da agricultura convencional para um modelo produtivo que demandasse menos insumos.

O termo adormeceu durante algumas décadas, enquanto a busca insaciável por produtividade tomava conta. Voltou com força em meio à urgência no combate às mudanças climáticas. A assinatura do Acordo de Paris, em 2015, reacendeu o tema, com as empresas passando a incorporar a agricultura regenerativa nas suas metas de sustentabilidade. Hoje, todas as gigantes do agro e de alimentos têm iniciativas na temática.

Regenerar ao invés de extrair

A classificação das práticas de agricultura regenerativa é um capítulo à parte. De forma simplificada, essas ações devem buscar regenerar os recursos naturais, ao invés de apenas extraí-los. Entre elas estão práticas já disseminadas na agricultura brasileira — inclusive bem antes de o termo virar moda — como o plantio direto e a rotação de culturas.

Outras práticas estão ganhando força, como o uso de plantas de cobertura, Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF), uso racional de recursos hídricos, adoção de produtos biológicos, redução de insumos químicos, manejo integrado de pragas e doenças, entre outras iniciativas que aumentam a matéria-orgânica no solo e promovem a captura de carbono da atmosfera.

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No mercado, cada vez mais atentos aos riscos de greenwashing, a inclusão de práticas como o plantio direto, que foram adotadas há décadas visando prioritariamente o aumento de produtividade, gerou algum desconforto. Afinal, qual é a adicionalidade para o ecossistema desse tipo de prática?

“Esse desconforto levou o universo corporativo a olhar objetivos e resultados”, diz Guilherme Raucci, especialista em sustentabilidade na agricultura e professor convidado da Fundação Dom Cabral.

Foco nos resultados

Com o intuito de medir, a partir de critérios científicos, o impacto da transição do agro global para agricultura regenerativa, surge a Iniciativa para Agricultura Sustentável (SAI, na sigla em inglês), que congrega 33 grandes empresas como Bayer, Cargill, Danone, Koppert e Syngenta.

Diante da falta de uma definição legal, a SAI estabeleceu quatro áreas de impacto universais: saúde do solo, água, biodiversidade e clima. Também listou os resultados almejados em cada uma delas e os principais princípios e práticas para alcançá-los.

Mas como a agricultura regenerativa é um conceito dinâmico, sempre olhando para as novas descobertas científicas na busca de produzir mais e melhor, as áreas de impacto são aplicáveis globalmente, enquanto as práticas e princípios são adaptáveis localmente.

Na régua da agricultura regenerativa, a SAI entende que muitas propriedades agrícolas no mundo estão avançadas na implementação, por isso seu modelo de trabalho prevê instrumentos de medição, como auditorias, para monitorar e avaliar os progressos desta jornada em intervalos de tempo.

O social também conta

No Brasil, o CEBDS tem uma leitura semelhante. “Não estamos nos baseando nas práticas, mas nos resultados que elas trazem. Por exemplo, o plantio direto é considerado uma prática de agricultura regenerativa, mas é feito no Brasil há 50 anos. Só ele é agricultura regenerativa? Não, a propriedade precisa respeitar outras questões ambientais e sociais. Não adianta ter plantio direto, usar de forma adequada o recurso hídrico e ter trabalho escravo”, explica Gheler.

Por isso, o CEBDS acrescenta o social às quatros áreas de impacto estabelecidas pela plataforma SAI. “Mas poucos protocolos inserem o social, justamente pela complexidade de medir resultados”, complementa Raucci.

Hoje, já há parâmetros para medir a presença de polinizadores, o sequestro de carbono, a quantidade de micro-organismos e a umidade do solo. Mas as métricas para medir os avanços da agricultura regenerativa precisam ser aprimoradas. Neste momento, tanto a plataforma SAI como o CEBDS estão debruçados nisso.

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Nesta semana, a câmara temática do CEBDS receberá membros do World Business Council (WBC), que desenvolveu indicadores em âmbito global e apresentará estes critérios. O CEBDS vai, então, avaliar quais métricas podem ser usadas no Brasil. “Tendo indicadores globais, é possível fazer comparações e mostrar que o Brasil é líder na temática”, diz a coordenadora do centro.

Economia circular

Com raízes no Instituto Rodale, o conceito de agricultura regenerativa tem influências da agricultura orgânica, que enxerga a propriedade rural como um organismo vivo, em que todas as partes têm interrelações.

“O resíduo de um componente vira alimento para o outro, criando uma economia circular dentro deste organismo agrícola”, explica Alexander Van Parys, engenheiro agrônomo e especialista em agroecologia.

Neste contexto, a ala da agricultura regenerativa alicerçada nos orgânicos, agroecológicos e biodinâmicos defende a eliminação de insumos químicos (defensivos e fertilizantes).

No entanto, boa parte dos adeptos da agricultura regenerativa fala na busca por equilíbrio no sistema produtivo e no reaproveitamento de tudo que é possível. Nesta nova agricultura, a lógica da economia circular se torna mandatória, sendo inclusive impulsionada por crises, como a da Rússia e Bielorrússia que provocou a disparada dos preços dos fertilizantes a partir de 2021.

O incidente levou o setor sucroalcooleiro a usar a vinhaça (resíduo da produção de açúcar e etanol rico em potássio) em aplicações localizadas com nematicida biológico e inseticida após o corte da cana-de-açúcar.

“Neste manejo integrado fazemos a adubação e o controle de pragas e doenças em uma única atividade. Não fazemos mais o corte de soqueira, o que diminuiu a entrada de tratores na lavoura, reduzindo a compactação do solo e resultou num incremento de produtividade de 70 toneladas por hectare para 76 toneladas por hectare no primeiro ano da vinhaça”, explica o engenheiro agrônomo Antônio Ferraz Júnior, coordenador da Agrícola JO, que tem 7 mil hectares de canaviais na região de Lençóis Paulista (SP).

Outra prática que tem feito a diferença e impulsionado o uso racional de agroquímicos é o Manejo Integrado de Pragas e Doenças (MIPD). Laercio Dalla Vechia, produtor de soja em Mangueirinha (PR), é um bom exemplo. Na safra 2019/2020, ele venceu o desafio nacional de máxima produtividade de soja do Comitê Estratégico Soja Brasil (Cesb) sem usar inseticidas.

Isso só foi possível porque, em um curso de manejo integrado no SENAR-PR, ele aprendeu a monitorar na lavoura o número de amigos naturais e inimigos naturais da soja. Com isso, colheu 118 sacas de soja sacas por hectare, mais que o dobro da produtividade média nacional, estimada em 55,5 sacas por hectare pela Conab, e se tornou o primeiro campeão do Cesb com nenhuma aplicação de inseticida.

Mudando a chave

Nos últimos anos, a Revolução Verde, o modelo de produção agropecuária predominante no Brasil desde o pós-guerra, mostra sinais de esgotamento. O combo de sementes híbridas, fertilizantes e defensivos químicos já não dá mais resultados como deu no passado.

“Na soja, a produtividade média está estacionada nos últimos anos. Quando isso acontece, é preciso olhar para aqueles que estão produzindo 40%, 50% a mais que a média. Geralmente, o solo deles não é compactado e estão investindo na biologia do solo, uma nova fronteira a ser explorada”, diz Raucci.

A família do engenheiro agrônomo Charles Peeters é um exemplo. Produtores de grãos na região de Rio Verde (GO), eles adotam um manejo sustentável há 35 anos. Começou com plantio direto, depois veio o sistema de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF) e, há 13 anos, Peeters intensificou o uso de produtos biológicos, principalmente no solo.

O produtor de grãos Charles Peeters; família adota manejo sustentável há 35 anos | Crédito: Divulgação
O produtor de grãos Charles Peeters; família adota manejo sustentável há 35 anos na região de Rio Verde, em Goiás | Crédito: Divulgação

“Sempre comecei pela fertilidade, que é a parte química do solo, porque a parte física e a biológica você constrói a médio e longo prazo. São ações com plantas de cobertura, com uso de compostos e biológicos, produtos que bioativam o sistema”, explica Peeters. “Essa bioativação gera descompactação, profundidade de raízes, melhora a oxigenação e contribui com a vida do solo”, explica Peeters.

Integrante do Grupo Associado de Pesquisa do Sudoeste Goiano (Gapes), Peeters acredita numa gestão por processos, que vai no detalhe. Visando a fertilidade do solo em profundidade, a cada cinco anos, o agricultor coloca gesso na lavoura, que ajuda na formação de raízes profundas ao inibir a atividade do alumínio, elemento prejudicial ao desenvolvimento radicular.  Além disso, faz uma aplicação anual de calcário em taxa variável, que melhora a estrutura do solo e fornece cálcio e magnésio, que aumentam a eficiência dos outros fertilizantes.

“Investir no sistema é um seguro que eu faço e o principal benefício é a resiliência. No ano bom, tenho a chance de alcançar novos patamares, produzir mais de 10% acima da média da fazenda, no ano ruim, consigo manter a média histórica da propriedade”, diz.

“Quando vem um estresse hídrico quem não está preparado perde demais”, acrescenta o agricultor de grãos em sequeiro, que tem conseguido uma produção média de soja por hectare de 77 sacas nos últimos cinco anos. Peeters ainda participa do Reg.IA — o consórcio conhecido como Produzindo Certo, que reúne Bayer, BRF e Agrivalle e promete pagar um prêmio no preço pela soja produzida com práticas regenerativas.

Café, referência global

Quando o assunto é agricultura regenerativa, o café é um dos segmentos do agro nacional mais avançados. Não por acaso, a Plataforma Global do Café — uma associação internacional que promove a sustentabilidade na cafeicultura em diversos países produtores, com atuação no Brasil desde 2012 — acaba de concluir um documento norteador da cafeicultura regenerativa.

O material é fruto do trabalho de harmonização dos conceitos de agricultura regenerativa, uma construção coletiva, coordenada pela Plataforma Brasil, que uniu representantes de toda cadeia cafeeira, indústria, traders, pesquisadores e produtores.  Além de encontros presenciais e virtuais, os consultores da Plataforma fizeram um levantamento bibliográfico sobre o assunto.

“Muitas das práticas que vêm aparecendo como novidade são objeto de estudo desde a década de 1950”, diz Eduardo Sampaio, consultor técnico da Plataforma Global do Café, destacando o trabalho pioneiro de professores como Elke Nogueira Cardoso (Esalq) e Joana Döbereiner (UFRRJ), que estudavam a biologia do solo, além de Ana Primavesi (UFSM), ícone da agroecologia, e Edmar Kiehl (Esalq), um grande especialista em matéria orgânica e criador do adubo organomineral.

Fazenda de café Três Meninas, propriedade ícone na agricultura regenerativa no Cerrado Mineiro. Crédito: Consórcio Cerrado das Águas
Solo sempre coberto: Forrageiras nas entrelinhas do cafezal ajudam manter temperatura amena | Crédito: Consórcio Cerrado das Águas

Após um ano de estudo e várias reuniões, a Plataforma chegou ao seguinte conceito: “Cafeicultura regenerativa é o sistema de produção onde práticas implementadas aumentam a resiliência e adaptação dos cultivos frente aos efeitos das mudanças climáticas, através da promoção da saúde do solo, da produtividade das colheitas, do estoque de carbono, da conservação da água e da biodiversidade, garantindo serviços ecossistêmicos e contribuindo para a prosperidade e bem-estar social do produtor”.

Também foram definidos sete elementos-chave para sua implementação. A próxima etapa, prevista para 2025, é a implantação de unidades demonstrativas de cafeicultura regenerativa em diferentes regiões produtoras, bem como seu monitoramento.

“Uma agricultura climaticamente inteligente é você dar condições para a natureza lhe ajudar”, diz Marcelo Urtado, cafeicultor da fazenda Três Meninas, propriedade ícone na agricultura regenerativa no Cerrado Mineiro.

Os desafios pela frente

Na COP-29, realizada Dubai em dezembro, o CEBDS apresentou um estudo sobre a necessidade de se adotar um conceito amplo de agricultura regenerativa sob aspecto socioambiental e econômico-financeiro.

“É preciso considerar a pluralidade das práticas agrícolas já adotadas e a realidade da agricultura brasileira em todos os tamanhos de propriedades: agricultura familiar, pequeno, médio e grande produtor”, diz Gheler.

A definição de métricas e critérios que analisem e comprovem os resultados previstos por um sistema regenerativo é outro desafio a ser superado. Neste momento, o CEBDS está em interlocução com o Ministério da Agricultura para colaborar com a criação de políticas públicas relacionadas ao tema.

“O governo ia lançar a Plataforma AgroBrasil+Sustentável, praticamente partindo do zero, mas foi adiado”, diz a coordenadora técnica da pasta de Sistemas Agroalimentares do CEBDS. “Queremos mostrar que o setor empresarial já faz isso em toda cadeia de fornecimento e que a gente pode contribuir.”

Na próxima COP, que acontece no próximo mês no Azerbaijão, o CEBDS vai apresentar alguns resultados de suas associadas com a agricultura regenerativa. Já para a COP-30, que será no Brasil, o conselho está programando o lançamento do Compromisso para Transformação dos Sistemas Agroalimentares. “Esperamos que o governo também chegue lá avançado nesta temática”, afirma Gheler.