Agricultura Regenerativa

Os pioneiros que estão mudando a agricultura em Goiás

Conheça o GAAS e o Gapes, grupos de produtores que se tornaram referência em agricultura regenerativa e hoje pautam até pesquisa

Flávia Montans, produtora de grãos e presidente do Gapes | Crédito: Divulgação
Flávia Montans,presidente do Gapes; grupo de produtores de Goiás tem centro de inovação e tecnologia | Crédito: Divulgação

Toda segunda-feira, 43 famílias de agricultores goianos se reúnem para trocar ideias sobre novas tecnologias, experiências no campo e falar sobre pesquisas em andamento com o mesmo propósito: avançar na jornada rumo à agricultura regenerativa.

“Somos um grupo fechado, criado há 25 anos, quando havia poucas pesquisas sobre a produção agrícola na região”, diz a produtora Flávia Montans, a primeira mulher a presidir o Gapes (Grupo Associado de Pesquisa do Sudoeste Goiano). “No começo, os produtores faziam experimentos em suas áreas e chamavam os demais para compartilhar o resultado”.

O boca-a-boca sobre os bons resultados de práticas mais sustentáveis na agricultura foi ganhando corpo, seja por meio de reuniões presenciais ou grupos de WhatsApp. Hoje, redes de produtores, como o Gapes, não apenas trocam informações como também compram insumos de forma conjunta, promovem pesquisas e atuam na área comercial.

“Tudo que vamos comprar é baseado em pesquisa. Fazemos ensaios de sementes de soja e milho e vemos quais reúnem a melhor produtividade e o melhor custo-benefício”, explica a presidente do Gapes.

As compras conjuntas começaram em 2004 e, em 2011, o grupo contratou um especialista para conduzir as pesquisas de forma sistematizada. Seis anos depois, o Gapes arrendou 60 hectares e estruturou seu próprio Centro de Pesquisa. No ano passado, o centro se tornou um Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT), o que permite ao Gapes participar de editais e acessar verbas governamentais. “Porque fazer pesquisa é caro”, ressalta Flávia.

Hoje, além das pesquisas de interesse dos associados — de sementes a nutrição de solo e análise de dados —, o centro atua de forma comercial, testando novas tecnologias de empresas do agro, o que ajuda a financiar o Gapes ICT.

Produtividade acima da média

Mas de nada adiantaria tanto aporte em pesquisa sem “a tradução” das descobertas aos produtores. Por isso, o grupo tem um serviço de extensão rural, com dois agrônomos que visitam as propriedades rurais e explicam como implementar na prática.

O resultado pode ser conferido na produtividade média dos associados do Gapes — 125 fazendas que, anualmente, produzem soja e milho em 235 mil hectares no Estado de Goiás. Na safra 2023/24, a produtividade média de soja dos membros do Gapes foi de 70,8 sacas por hectare, bem acima da média de Goiás (58 sacas/ha) e do Brasil (56 sacas por hectare), segundo dados da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento).

No milho safrinha, a história se repete. “A média nacional foi de 92,6 sacas/ha. Já a média estadual foi de 103 sacas/ha, enquanto os produtores do grupo alcançaram uma produtividade média de 136 sacas/ha”, afirma Flávia.

Não por acaso, o Gapes integra o Reg. IA, primeiro consórcio de Agricultura Regenerativa do Brasil. Formado por Bayer, BRF, Milhão Ingredients, Agrivalle e pela agtech Produzindo Certo, o Reg.IA tem 37 mil hectares de grãos plantados em sistemas regenerativos distribuídos por 38 fazendas em cinco estados.

Este ano será a primeira colheita e a expectativa é colher 160 mil toneladas de soja e 300 mil toneladas de milho regenerativos e agregar, no mínimo, um prêmio de 2% acima do preço da commodity.

Obstáculos que transformam histórias

Goiás também é casa de outro grupo que se tornou referência em agricultura regenerativa no País: o GAAS (Grupo Associado de Agricultura Sustentável), originalmente conhecido como GAS (Grupo Agricultura Sustentável).

A semente para a criação do coletivo foi lançada em 2006, ano da publicação do Plano de Manejo do Parque Nacional das Emas, localizado na região de Chapadão do Céu (GO). O plano restringia os agricultores no entorno do parque de aplicar defensivos agrícolas que não fossem faixa verde (pouco tóxicos).

Com uma propriedade de 990 hectares em Mineiros (GO), na divisa com o parque, o engenheiro agrônomo Rogério Vian se viu numa encruzilhada, pois plantava algodão, cultura conhecida pelo uso intensivo de insumos químicos.

“Ali percebi que precisava mudar, procurar outro modelo de agricultura. Mas a agricultura orgânica, agrofloresta, agricultura biodinâmica e sintropia aconteciam em pequeníssima escala. Como seria em larga escala?”, indagava Vian.

Nesta época, o produtor foi procurado pela empresa RSA para fazer um teste com dois produtos biológicos para tratamento de sementes. “Tinha dúvida sobre tirar o tratamento químico, mas comecei a testar. No primeiro ano fiz 54 hectares, o resultado foi muito bom e fui aumentando”, conta o engenheiro agrônomo.

Detalhe: naquele período, não existiam máquinas agrícolas para o tratamento de sementes no sulco — o habitual era tratar as sementes no barracão. “Mas a empresa Orion tinha os primeiros jatos dirigidos do mercado e fez os primeiros testes do Centro-Oeste na minha fazenda”, diz Vian. “Hoje, praticamente todas as plantadeiras vêm com um tanque, para colocar produtos biológicos, que são aplicados via sulco durante o plantio”, complementa.

Regenera The AgriBiz

Em 2006, a internet era incipiente no Brasil e a ferrugem asiática derrubava a produtividades das lavouras de soja por todo país. Neste contexto, Vian e demais agricultores ao redor do parque começaram a buscar soluções.

“Me passaram o contato do Cassiano Nieri, um agricultor/consultor da Bahia, que fazia multiplicação de biológicos. Fui com amigos conhecer e ficamos maravilhados”, conta Vian, lembrando que a produção de bioinsumos on-farm só foi regulamentada em 2021.

Nesta visita à Bahia, Vian teve o primeiro contato com pó de rocha, um resíduo da mineração, que — dependendo da rocha — pode ser usado como adubo nas lavouras. De volta a Mineiros (GO), soube do trabalho de pesquisadores, como Éder de Souza Martins (Embrapa) e Claudia Gorgen (Universidade de Brasília), que estudavam o insumo, batizado de “remineralizador de solo” pela função de repor os nutrientes que o solo perdeu.

“Pedi para acompanhar as pesquisas. Fui ajudar a plantar, colher, aplicar pó de rocha. Depois, eles me acompanharam na primeira área comercial a usar pó de rocha, os mesmos 54 hectares do experimento com biológicos”, explica Vian. Ele colocou cinco toneladas de pó de rocha por hectare e depois ficou cinco anos sem colocar nada, colhendo acima de 60 sacas de soja por hectare.

Neste ínterim, o grupo de produtores ao redor do Parque das Emas conseguiu suspender o plano de manejo, mas Vian e outros agricultores já tinham virado a chave para este novo jeito de produzir, que ganhava cada dia mais adeptos.

Um Professor Pardal em cada fazenda

A demanda por conhecimento era tanta que em 2011 eles criaram um grupo de WhatsApp. Na época o aplicativo limitava a participação a 256 pessoas, então foram criados vários grupos, GAS1, GAS2, GAS3.

“Em 2014, organizamos o primeiro evento para troca de experiências. Convidamos o Cassiano Nieri, os pesquisadores da Embrapa e lotamos a Federação da Agricultura do Estado de Goiás (FAEG). No segundo evento, reunimos 500 pessoas, no terceiro 700 pessoas e aí veio a pandemia”, conta Vian.

O crescimento dos interessados por trocar experiências sobre esta nova agricultura levou Vian a transformar o grupo numa pessoa jurídica. Foi quando o GAS ganhou mais um A: Grupo Associado de Agricultura Sustentável (GAAS), hoje com 700 associados.

“A vantagem de sermos um grupo de inovação aberta é que cada um pega aquele conhecimento e melhora. Toda fazenda tem uma pessoa, um ‘Professor Pardal’ que aperfeiçoa o sistema”, diz Vian.

Muitas das inovações discutidas anos atrás pelo grupo se tornaram realidade em todo Brasil:  os insumos agrominerais (pó de rocha) foram regulamentadas em 2016, a multiplicação de bioinsumos on farm, em 2021.

Vian, que chegou a ser produtor certificado de soja orgânica, hoje é adepto da agricultura regenerativa. “A gente trabalha para reduzir o máximo os insumos químicos, adubos e defensivos. Ainda há muitos gargalos para trabalhar com orgânicos em larga em escala. A questão dos herbicidas é uma delas”, diz.

O produtor descreve a agricultura regenerativa como uma caixa com várias ferramentas à disposição. “Hoje, uso remineralizadores, fosfato natural, biológicos, mix de plantas de coberturas… Faço uma agricultura de processos, focada em um solo saudável”, diz o fundador do GAAS, grupo cujo foco é reduzir custos e a dependência de insumos.

Regenera The AgriBiz

“Incentivamos a economia circular, a compra de produtos da região. Não faz sentido o produtor buscar um pó de rocha que está a 1.000 km da sua propriedade”, explica. “Nosso foco nunca foi bater recordes de produtividade, mas reduzir custos, dependência de insumos e, no fim das contas, ter mais dinheiro no bolso de produtor”, diz Vian.

Para isso, os associados do GAAS estão sempre em busca de novas tendências. Se lá atrás a multiplicação de micro-organismos isolados, que controlam uma determinada praga, foi a grande descoberta, agora o grupo tem se dedicado a entender a técnica da doutora Elaine Ingham, uma das maiores especialistas do mundo em biologia do solo ligada à Rede de Vida do Solo (Soil Food Web). O objetivo é aprofundar o conhecimento nos chamados micro-organismos eficientes, presentes nas reservas legais das propriedades rurais.

“O produtor vai até a mata nativa, coleta a colônia de micro-organismos, multiplica em grandes tanques e aplica no solo para recolonizar, com as bactérias e fungos nativos, o que foi degradado nos últimos anos”, explica Vian.

“Há cinco anos, trouxemos a doutora Elaine Ingham ao Brasil para ela nos ajudar a desenvolver este sistema. Que eu saiba, somos o único grupo de produtores no mundo que ela dá consultoria. Já há muitos agricultores em larga escala fazendo isso”, finaliza o fundador do GAAS.